As Dúvidas de Juliana Perdigão (e outras minhas)
As Dúvidas de Juliana Perdigão (e outras minhas)

As Dúvidas de Juliana Perdigão (e outras minhas)

Por Renan Bernardi

No fim de 2020, o Spotify, em sua tradicional demonstrativa-retrospectiva, me apresentou que o álbum Sambas do Absurdo foi o que mais ouvi no ano, com duas músicas ocupando os dois primeiros lugares do meu top 10.

Lançado em 2017 pela YB Music, esse trabalho realizado por Rodrigo Campos (violão, cavaco, guitarra, voz, composição e direção artística), Juçara Marçal (voz e direção artística) e Gui Amabis (teclado, programações, voz e produção musical) com letras de Nuno Ramos, traz em série numerada (do 8 ao 1), oito sambas de título “Absurdo”, onde cenários e reflexões abordam a falta de sentido do cotidiano, livremente inspirados no ensaio “O Mito de Sísifo”, de Albert Camus.

Essa novidade em descobrir que tinha ouvido o álbum muito mais do que imaginava me fez retomá-lo com ainda mais afinco, mergulhando e me familiarizando cada vez mais em seus conceitos.

Nesse processo, me lembrei de outro projeto, este lançado em 2020, que mesmo já tendo conferido durante o ano, eu sabia que teria que retomá-lo para absorver melhor os seus assuntos. Trata-se de Dúvidas, o mais recente lançamento da cantora, instrumentista e compositora Juliana Perdigão.

Acontece que relacionei este álbum com os Sambas do Absurdo por motivos quase banais: além dos dois pertencerem ao mesmo selo, as músicas do lançamento de Juliana também trazem todas um título conceitual (“Dúvidas”) em uma série enumerada (1 ao 11), só que dessa vez de forma desordenada na reprodução do disco.

Para este que é o seu quarto álbum de estúdio, Juliana apostou em um formato diferenciado de composição, trabalhando textos declamados em palavra-falada, arranjados através de uma sessão de improviso coletivo nos estúdios da YB Music.

Para concepção do álbum, participaram dessa sessão músicos como Thomas Harres (bateria, percussão), Fabio Sameshima, (baixo e sraj), Dudu Tsuda (moog, rhodes e chapas de metal) e Mauricio Tagliari (guitarra), acrescentando na sonoridade os overdubs de Thiago França (sax e flauta) e da própria Perdigão (clarinete, clarone e flauta).

Palavra-falada

O formato de palavra-falada, também conhecido como spoken-word, onde a poesia é apresentada em recitação por cima de uma base instrumental, tem origens diversas e seculares ao redor do mundo, como os trovadores europeus e os griots e griottes da África Ocidental.

O desenvolver dessa cultura resultou em expressões como o toast jamaicano, que aliado com a vanguarda revolucionária de Gill Scott-Heron, foram células essenciais para a formação do hip-hop nos Estados Unidos.

Também nos EUA, a influência da poesia declamada pela geração de poetas beat levou o spoken-word para diferentes vertentes do rock e da música alternativa, se fazendo presente em trabalhos de artistas como The Doors, Patti Smith, Lyndia Lunch, Laurie Anderson, Sonic Youth e muitos outros.

A partir disso, o spoken-word vem se transformando em formatos diversos. Um bom exemplo são as manifestações de poesia slam, que tendo origens do Chicago, hoje são populares pelo mundo todo.

No Brasil, manifestações recentes vêm dando atenção para este formato, desde trabalhos de Edgar, Lupe de Lupe, passando por Rodrigo Brandão (no álbum Outros Barato), Iara Rennó (no álbum AfrodisíacA) e Negro Leo (em seu mais recente trabalho, chamado CAC CAC CAC).

A própria Juliana Perdigão já havia utilizado de spoken-word em uma faixa chamada “Trottoir”, de seu álbum Ó, de 2016.

Improvisação livre

Mesmo contendo elementos de freejazz e de no wave – vertentes com as quais se costuma relacionar a improvisação livre – o álbum Dúvidas também percorre pelo rock, jazz tradicional, soul music, pop e elementos da música popular brasileira, com especial atenção as abordagens percussivas.

Mas muito mais do que gêneros musicais, a sonoridade do álbum se alterna muito conforme o teor do texto, buscando ambientar as questões trazidas nas palavras que Juliana declama, chegando a mencionar a melodia de “Strangers In The Night”, de Frank Sinatra, logo após o texto citá-la na faixa “Dúvida 9”; ou como quando a bateria simula o som de um ventilador após o objeto ser citado, na faixa “Dúvida 8”.

As dúvidas

Com uma linguagem cinematográfica e descritivas dos fatos, as letras trazem microcontos que supõe relações inusitadas de acontecimentos, que acabam por nos apresentar a fragilidade da nossa realidade.

Com um uso continuo de “ou’s”, Juliana simboliza a troca aleatória de pensamentos (dúvidas) que passam pela cabeça, combinando sucessões de eventos tanto catastróficos, quanto banais.

Nessas cenas, visualizamos desde ações recheadas de tabus (uso de drogas, masturbação), séries de acontecimentos que provocam resultados extraordinários (como quando um descuido sanitário provoca o afastamento de um deputado evangélico em um dia de votação onde é aprovada a descriminalização do aborto) e ainda outros mais corriqueiros e cômicos (como quando o barulho de chuva permite que uma idosa possa peidar ao lado de um outro familiar).

Através de textos curtos constantemente interrompidos por um novo assunto, as dúvidas se apresentam sem serem aprofundadas ou resolvidas, nem mesmo criando uma relação entre uma e outra.

Com apenas 13 minutos de duração, Dúvidas é um trabalho que consegue retratar um fluxo de consciência bem-humorado, sem perder ou forçar a acidez dos discursos que propõe, que são, afinal, apenas uma colcha de retalhos de ideias e reflexões sobre o cotidiano e suas possibilidades absurdas.

Trata-se de uma viagem no pensamento criativo de Juliana, que nos permite testar as alternativas de nossa imaginação, mapeando referências e relações entre o encadeamento de ações e ideias que mesmo sendo assumidamente desconexas, conseguem instigar nosso pensamento.

Um comentário

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