Prazeres culposos: filmes ruins nem sempre são ruins
Prazeres culposos: filmes ruins nem sempre são ruins

Prazeres culposos: filmes ruins nem sempre são ruins

Um ótimo filme ruim, para mim, é Anjos da Noite: A Rebelião (2009) (Foto: Divulgação)

Por Ana Vertuoso

Quando criança, tive a infelizmente nada rara experiência de crescer em uma família caótica. Lembranças de discussões acaloradas, repletas de ressentimentos antigos superam recordações felizes de piqueniques no parque, histórias antes de dormir, brincadeiras, fadas e arco-íris. As memórias ruins constroem grande parte de uma infância dentro daquela casa cheia de mulheres, todas mestres em guardar rancor melhor do que ninguém. Porém, este texto não é uma forma de reviver o passado e implorar por simpatia. Dedico minhas horas de terapia a isso. Então, o único fragmento que trago é de um momento feliz.

Numa noite de fim de semana – provavelmente sábado, mas talvez domingo – todas sentamos na sala de estar de minha avó. Paredes laranjas vibrantes, lajotas brancas no chão, dois sofás pretos posicionados de modo estranho – claramente, nenhuma possui o dom de decorar ambientes – e, a poucos centímetros da porta, uma estante torta com uma antiga Philco ligada sob um tocador de fitas VHS. Enquanto lobisomens fugiam de vampiros e vampiros tentavam desviar do sol, lembro de me sentir contente. Ninguém discutia, murmurava ou gritava. Os únicos comentários eram sobre as cenas na tela. Escrevendo agora, penso que aquela noite, e todas as outras passadas da mesma maneira, foram os momentos em que mais me senti próxima daquelas pessoas. 

Talvez seja tolice guardar uma memória tão simples com tanto carinho, mas não é para isso que os filmes existem? 

A arte, independente do artista ou do meio, existe para nos fazer sentir algo e a tal Sétima Arte não é diferente. Afinal, o cinema se tornou a indústria de proporções colossais que é hoje por sua habilidade única de nos entregar um par de binóculos apontados diretamente para a vida de outra pessoa e nos permitir vislumbrar uma nova realidade – tão diferente, mas, às vezes, tão perturbadoramente parecida com a nossa própria. E o melhor: filmes fazem isso em apenas algumas horas. Algo que acredito ser ideal para uma sociedade obcecada com produtividade e escrava da própria falta de tempo. Uma espécie de orgasmo rápido ao invés do prazer prolongado encontrado nas páginas e capítulos de um livro.

Diferente da literatura, o cinema também nos fornece uma base visual sob a qual nossa imaginação é livre para construir algo a mais. Sem a necessidade de criar rostos, roupas, quartos, paisagens, temos a liberdade de ir além, de criar detalhes. Ao nos dar a chance de ser o voyeur dos outros, filmes também nos permitem viver momentos que nunca viveremos, que já passamos e que ansiamos, um dia, experimentar. Essa imersão pode ser – e quase sempre é – afetada por uma série de aspectos técnicos e escolhas artísticas, porém, não existe um único elemento que possa ser definido como fundamental para que um filme seja bom. Isso, porque parte da magia que mantém a arte viva há tantos anos é o quão única ela é para cada um. Óbvio, uma bela cinematografia, um roteiro bem polido e efeitos especiais de qualidade podem fazer toda a diferença quando se trata do cinema. Porém, nada disso é verdadeiramente necessário para tornar um filme memorável, mesmo que seja apenas para algumas pessoas.

Exemplo disso, encontra-se no fato de que uma das obras mais especiais que já assisti é Anjos da Noite: A Rebelião (2009). Para os que não conhecem, por favor conheçam. Para os que conhecem, não me julguem muito duramente, pois admito que nenhuma das qualidades que citei anteriormente está presente nessa catástrofe em forma de filme. As cenas, perpetuamente azuis demais, são quase sempre muito escuras; a fortaleza suja e úmida onde todos os personagens habitam me causa agonia pela quantidade de mofo que, provavelmente, está presente em todos os cantos; o roteiro conta, não mostra; existem mais monólogos dramáticos do que é aceitável para um filme de 92 minutos; e os efeitos especiais são deploráveis. No entanto, por algum motivo, assistir a um Michael Sheen suado e cabeludo lutando por amor e liberdade me deixa muito feliz.

Isso porque, apesar de todos os aspectos técnicos ruins, associo esse filme ao sofá de minha avó em uma noite de fim de semana. A obra é especial para mim pela experiência extremamente positiva que tive ao assisti-lo pela primeira vez, me faz sentir bem porque é assim que me senti quando criança. E, ao menos na minha opinião, isso importa.

Bons filmes não são somente aqueles com grandes orçamentos e nomes famosos, ou aqueles sem verba nenhuma exibidos para cinco pessoas em um festival independente. São os que te fazem sentir. Então, por mais que devamos apreciar as incontáveis ​​horas gastas na elaboração de recursos tecnicamente excelentes, também é importante lembrar dos desastres bagunçados que ocupam um lugar especial em nossa memória.

Deixe uma resposta