Orson Welles e o Brasil

Por Renan Bernardi

Quem conhece um pouco sobre cinema, já é muito bem familiarizado com o nome de Orson Welles, o cineasta norte-americano que ousou buscar mudanças nos padrões e nas possibilidades do cinema na década de 40.

Partindo de uma influência do teatro e aliado ainda com as inovações técnicas de ângulos, narrativas e montagens que propôs, Welles conquistou Hollywood – e, por consequência do imperialismo cultural, o mundo. Seu primeiro longa-metragem, o mais do que clássico “Citizen Kane”, é o responsável por sua fama internacional.

Já estabelecido o seu reconhecimento, no mesmo ano de 1941, o diretor começa as produções de “The Magnificent Ambersons” (lançado em 1942) e também anuncia o seu projeto “It’s All True”, que o leva a ter uma relação com a América Latina e, principalmente, com o Brasil.

O primeiro capítulo deste projeto chama-se “My Friend Bonito”. Gravado no México em 41, o capítulo mostra a amizade de uma criança com o seu touro e a relação disso com as tradições socioculturais de seu país. Com uma linguagem sensível e um formato de docuficção, essas filmagens (assim como praticamente todas as obras de Welles a partir dela) não tiveram exatamente o fim desejado pelo diretor, em decorrência dos acontecimentos que se seguiram neste mesmo ano.

Política de boa vizinhança

Devido a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, o governo iniciava suas campanhas da política de boa vizinhança, onde estreitava as relações com os países latinos, buscando apoio para as forças aliadas.

Aproveitando do interesse de Welles pela América Latina e a sua influência como artista, o então coordenador de Assuntos Interamericanos, Nelson Rockefeller, convida o diretor para realizar um filme sobre o carnaval no Rio de Janeiro, o que faz Orson, embebido de nacionalismo, aceitar e embarcar para o nosso país em 1942. Logo saberia Welles – e também, o Brasil – que isso mudaria os rumos do cinema para as duas partes.

Em terras cariocas, Orson Welles registra e se encanta pelo nosso carnaval. Conhece o célebre ator Grande Otelo, participa até de um programa de rádio em homenagem à Getúlio Vargas (então Presidente do Brasil) e resolve se inteirar ainda mais sobre todo esse universo que se apresentava para ele.

Dessa sede em documentar mais sobre as origens do carnaval, nasce “Carnaval – A História do Samba”, que seria o segundo capítulo de “It’s All True”.

Mas além de se envolver na história do ritmo brasileiro, Welles acaba se envolvendo também com o povo do nosso país e com outra história que acabara de acontecer em nossas terras.

Os jangadeiros

Em setembro de 1941, quatro jangadeiros partiram de Fortaleza (CE) para o Rio de Janeiro (na época, capital do Brasil) dentro de uma mesma jangada com a missão de falar com Getúlio Vargas sobre as péssimas condições em que trabalhavam, buscando uma garantia de seus benefícios como trabalhadores.

Depois de 61 dias no mar, sem bússola e parando no caminho para buscar água e comida, mas também adquirindo muitos admiradores e apoiadores, os jangadeiros chegam ao Rio já como heróis nacionais.

Com a grande repercussão do ato, Getúlio recebe-os e promete cumprir este pedido que exigiu tantos esforços. Já Orson Welles se encanta profundamente pela história e pela coragem do ato, e disso nasce “Jangadeiros”, o terceiro episódio de “It’s All True”.

Complicações

Já no processo de registro da história dos jangadeiros, uma série de complicações começa cercar o diretor. Complicações essas que iriam afligir toda a sua carreira.

Primeiramente, “The Magnificent Ambersons”, o seu filme que ficou sendo montado nos Estados Unidos, teve o final censurado pela produtora RKO Radio Pictures, que cortou 45 minutos da versão de Welles e alterou seu final, causado uma péssima recepção do público e crítica para a produção.

Ainda no Brasil, o líder da expedição jangadeira, apelidado de Jacaré, morre durante as filmagens em que Welles buscava justamente retratar a sua heroica jornada.

Não bastasse esse baque, a RKO Radio Pictures, responsável também pelos custos da produção no Brasil, retira boa parte de seu apoio financeiro ao filme, fazendo com que Welles terminasse-o a duras custas, com baixo orçamento e sem o patrocínio necessário para o seu lançamento.

Dessa forma, todo o projeto “It’s All True” acaba engavetado e não lançado oficialmente. Boatos diziam que suas gravações teriam sido totalmente descartas, o que se comprovou irreal com a descoberta das tomadas dessas gravações em 1985 por Fred Chandler.

Muita informação se perde e se confunde na história que envolve Orson Welles e seus meses no Brasil, mas muito pode ser solucionado através do documentário que então levou o nome de “It’s All True” lançado em 1993, onde essa história é contada em dois períodos diferentes, com participação de Grande Otelo, Peri Ribeiro (filho de Herivelto Ribeiro, que participou das gravações de “Carnaval”), além de descendentes dos jangadeiros cearenses e outras pessoas do meio cinematográfico estadunidense associadas ao trabalho de Orson na época. Na parte final do filme, são apresentadas então as filmagens originais do filme de “Jangadeiros” encontradas em 1985, um belíssimo registro gravado nas praias de Fortaleza.

Nem tudo é verdade!

Mas além da parte que atinge a Orson Welles, a outra metade dessa história – no caso, o Brasil – também é muito interessada acerca dessa série de acontecimentos.

Um dos maiores (se não o maior) entusiasta dessa história foi o diretor Rogério Sganzerla. Fã assumido de Welles, Sganzerla pesquisou e desenvolveu produções próprias sobre a estadia do diretor estadunidense em terras brasileiras.

Entre estas produções, podemos citar “Nem Tudo É Verdade”, de 1986. Ou seja, antes mesmo dos Estados Unidos realizarem uma produção sobre esse fato, Sganzerla já criou sua própria docuficção sobre Orson Welles e o Brasil.  Nesse filme, entre simulações do comportamento de Welles em nossas terras, onde o diretor é interpretado por ninguém menos que Arrigo Barnabé, “Nem Tudo É Verdade” também traz trechos de imagens da época, pedaços das gravações de Welles que Sganzerla já tinha acesso e ainda um belo depoimento de Grande Otelo sobre sua convivência com o diretor.

Além deste filme, Rogério ainda fez o curta “Linguagem de Orson Welles”, lançado no Brasil no mesmo ano em que “It’s All True” foi lançado nos EUA, e ainda “Tudo É Brasil”, de 1997, onde finaliza a sua trilogia em mais um documentário sobre o tema.

A relação de Sganzerla com Orson Welles ainda se prolonga em mais duas produções do brasileiro: “Perigo Negro”, curta-metragem de 1992, feita a partir de um roteiro que Oswald de Andrade teria enviado para Welles; e “O Signo do Caos”, último longa-metragem do diretor que faz referências diretas à obra produzida por Orson no Brasil.

Com a palavra, Igor Nolasco

E para entendermos mais sobre as relações do Brasil com a breve presença do diretor norte-americano em nosso país, entrevistei o niteroiense Igor Nolasco, que é estudante de cinema e tem um profundo conhecimento sobre este tema.

– Para começarmos, gostaria de saber: No seu ponto de vista, qual foi a motivação definitiva para o projeto “It’s All True” não ter funcionado como deveria? A sede criativa de Welles atrapalhou a demanda que lhe foi proposta? A RKO é culpada? O Governo Brasileiro? Foi tudo fruto do azar ou, até mesmo da ingenuidade (como já justificou Rogério Sganzerla)?

Igor: É muito difícil apontar um “culpado” para o fracasso do “It’s All True”, ou de pelo menos traçar a ineficácia da finalização do filme a um culpado único. A verdade é que uma série de fatores contribuíram pra que as coisas não dessem certo. A primeira foi o envolvimento de Orson Welles, que para a indústria do cinema daquele período era, em geral, considerado sinônimo de problemas. Pode parecer chocante ouvir isso agora que Welles tem seu lugar na história após ser alçado ao patamar de gênio, mas na época ele era visto muito mais como um prodígio megalomaníaco e irresponsável do que como um grande diretor. Pra entender isso é preciso analisar sua trajetória enquanto cineasta até aquele momento.

O primeiro projeto que Kane tentou fazer com a RKO Pictures na verdade não foi o “Citizen Kane”, mas sim uma adaptação do livro “Heart of Darkness”, de Joseph Conrad. Era a Hollywood da virada da década de 1930 pra de 1940. Colocando em perspectiva, a chegada do som às grandes produções tinha acontecido cerca de dez anos antes. Era uma indústria que tinha há pouco atingido seu apogeu no desenvolvimento, o sistema de estúdios da velha Hollywood estava chegando no auge dos seus poderes, então era uma indústria conservadora, pois tinha muito dinheiro em cada projeto. Welles, que vinha do teatro, de montagens arrojadas e formalmente exuberantes de “Macbeth”, de Shakespare, e “Dr. Fausto”, de Christopher Marlowe, queria trazer os espetáculos visuais e as inovações na linguagem que empregara nos palcos para seus filmes. Seu “Heart of Darkness” seria todo filmado em primeira pessoa, no ponto de vista do personagem principal, que seria interpretado pelo próprio Welles. Ele também faria o papel do antagonista da história, o Coronel Kurtz. Então você tem uma indústria conservadora, que está investindo dinheiro em um jovem e promissor cineasta estreante, e ele quer fazer um filme a partir de uma linguagem completamente diferente da usual e ainda por cima interpretar os dois personagens mais importantes. É claro que não deu certo. Chegaram a fazer cenários e maquetes pro filme, testes de maquiagem, existem fotografias de Welles caracterizado como o Coronel Kurtz, mas não foi pra frente. Muito tempo depois, o “Heart of Darkness” foi filmado por Francis Ford Coppola, que adaptou a história pra guerra do Vietnã e a rebatizou de “Apocalypse Now”.

No fim das contas, o primeiro filme que Welles efetivamente completou foi o “Kane”. Hoje é considerado um dos melhores filmes de todos os tempos, mas na época estava longe de ter esse verniz todo. Welles vivia em pé de guerra com o co-roteirista do filme, Herman Mankiewicz, e até hoje existem discussões sobre quem escreveu o que no roteiro de “Kane”, porque Welles era muito controlador enquanto cineasta. Rodou uma parte considerável do filme enquanto mentia para a RKO dizendo que estava em fase de ensaios com o elenco e a equipe, para que pudesse fazer tudo do seu jeito sem que o estúdio pudesse interferir. Quando o filme saiu, não foi exatamente um sucesso de bilheteria. Não foi um fracasso, mas ficou abaixo das expectativas da RKO. Você espera que o que hoje alguns consideram o “melhor filme de todos os tempos” tivesse sido um estouro na época, uma revolução, mas ele foi recebido com absoluta normalidade, de forma meio fria. Não foi ovacionado pelas premiações, não ganhou nenhum Oscar. Então não era como se Welles tivesse se provado ainda, pelo menos não aos olhos da indústria.

“The Magnificent Ambersons”, seu projeto seguinte, era uma adaptação do livro de Booth Tarkington. Welles tinha ambições grandes para esse filme, queria que fosse uma visão amarga e incisiva acerca das classes burguesas, na qual os anos de ganância das personagens acabaria resultando em solidão e infelicidade. Seria um filme bem crítico, talvez comparável nesse sentido ao “La Règle du Jeu”, de Renoir, ou “Le charme discret de la bourgeoisie”, de Buñuel. O problema é que, quando ele estava no meio das filmagens, foi chamado para visitar o Brasil em nome da política da boa vizinhança. As pessoas não lembram disso hoje em dia, mas Welles tinha uma certa associação com a política. Acabou se tornando bem próximo do presidente Franklin Roosevelt, teve seu período enquanto orador e comentarista político. O “It’s All True” era, de certa forma, um projeto de interesses mútuos da RKO Pictures, da política da boa vizinhança da Casa Branca e do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) de Getúlio Vargas.

Welles finalizou rapidamente as filmagens de “Ambersons” e partiu para o Brasil no intuito de realizar seu novo projeto. Ele tinha uma paixão enorme por começar novos projetos, mas não tanto em terminá-los. Isso ao longo de toda a sua carreira e toda a sua vida, não foi só com “Heart of Darkness” que isso aconteceu. Welles deixou alguns filmes incompletos quando morreu, coisas que tinham sido filmadas décadas antes, como sua versão de “Don Quixote”, filmada em locação na Espanha; o filme foi montado pela companheira de Welles e lançado em home video; ou “The Other Side of the Wind”, que foi finalizado pela Netflix e lançado em 2018. Welles, com o passar do tempo, ficou famoso por fazer filmes custosos que não davam lucro, e ainda correndo o risco de abandonar o projeto pela metade e deixar os investidores sem retorno. Ele passou a rodar filmes na Europa porque, depois de certo ponto da sua carreira, ninguém mais queria bancar os projetos dele nos Estados Unidos. Alguns filmes, como sua versão cinematográfica de “Macbeth”, ele só finalizou a montagem por pressão externa, porque se dependesse dele, ele largaria e partiria para o próximo projeto. Welles adorava começar coisas, mas era indisciplinado. Gostava de fazer mil projetos ao mesmo tempo, pouco importava se os terminasse ou não.

Quando Welles saiu dos EUA, a RKO refilmou algumas cenas de “Ambersons” sem a aprovação ou sequer a ciência do diretor. Colocaram um final diferente do original, mas não foi só o final, mexeram em várias coisas. E a montagem do filme ficou completamente nas mãos da RKO. E ele só foi saber disso quando chegou nos EUA após muitos meses passados na América Latina. Para além de considerarmos o fator “Orson Welles, cineasta arisco e que viria a criar o costume de abandonar projetos sem finalizá-los” como um dos fatores pro fracasso de “It’s All True”, também é preciso se levar em conta que Welles e a RKO já vinham de uma relação conturbada. “It’s All True” e “Ambersons” deterioraram ainda mais o que já vinha sendo uma parceria tensa desde que “Heart of Darkness” fora descontinuado.

Welles tinha um esboço dos episódios que queria pro “It’s All True”. Ele gravou o “My Friend Bonito” no México, é uma filmagem que existe. Quando veio pro Brasil, Welles filmou várias coisas. No Rio de Janeiro, filmou sequências musicais coloridas (o resto do filme era em preto e branco) nos estúdios da Atlântida, simulando o carnaval. Filmou os jangadeiros que tinha vindo para o Rio falar com Getúlio, e nesse episódio teve um outro problema, que foi a morte do jangadeiro que eles chamavam de Jacaré durante as filmagens, então é acrescentado mais um problema para “It’s All True”. Nesse período no Rio de Janeiro, Welles conheceu o ator Grande Otelo, que naquela época ainda não era a grande estrela que viria a ser. Otelo virou uma espécie de guia urbano para Welles no Rio, por assim dizer, e apresentou a áreas do Rio de Janeiro que estavam fora das rotas turísticas, como o Morro da Mangueira. Welles teria chegado a filmar um pouco do carnaval da Mangueira e da vida nas favelas. Aí entra outro problema, porque ao filmar essas coisas, ele estava indo contra os interesses do DIP, que queria que Welles promovesse ao público estadunidense a visão clássica do Rio de Janeiro turístico, praiano, cosmopolita e branco. Essa visão antagônica ao que o DIP queria era outro problema pro filme.

Welles passou um bom tempo no Brasil, pois queria filmar o máximo de coisas que conseguisse.  Ele enviava instruções de montagem do “Ambersons” para os EUA, sem saber que elas estavam sendo sumariamente ignoradas, e pedia para a RKO continuar enviando dinheiro para que ele pudesse continuar filmando e sustentando sua estadia no Brasil. Depois de vários meses gastos sem resultados concretos e com o cineasta indo contra os interesses do DIP, a RKO parou de enviar dinheiro e decidiu descontinuar o projeto. É preciso mencionar também que enquanto Welles estava no Brasil, a diretoria da RKO, que até então era relativamente compreensiva com ele e tinha interesse nos seus projetos, foi substituída por outra que o via com menos deslumbramento e mais rigor.

A esse já enorme acúmulo de problemas, somou-se a complicação quanto aos direitos sobre o filme e o paradeiro dos rolos. Quando o projeto foi descontinuado a RKO sumiu com o filme, pois ele era de propriedade da produtora, e não de Welles. Ele eventualmente conseguiu recuperar os direitos do filme, mas eles voltaram pra RKO em determinado momento. Orson Welles morreu sem ver o “It’s All True” de novo. Os rolos passaram décadas desaparecidos, o que gerou especulações sobre o que teria acontecido com eles. Rogério Sganzerla fala um pouco sobre isso na série de filmes que fez sobre a passagem de Welles pelo Brasil. Alguns diziam que os rolos haviam sido queimados ou jogados no mar, dentre coisas assim. O próprio Welles endossava algumas dessas teorias.

Acaba que uma soma de fatores contribui pro triste fim de “It’s All True”: Welles, a RKO, o DIP, a morte de Jacaré, o sumiço dos rolos… é uma história muitas variáveis, a maioria delas desfavorável pra que o filme visse a luz do dia.

– Em entrevista para Folha de S. Paulo em 1998, Sganzerla diz que o cinema de Orson Welles “fez tudo o que o cinema brasileiro viria a fazer”. Dentro desse cenário do cinema nacional, entre influências e condições de trabalho, que resultados essa estadia de Orson Welles trouxe para nossas produções?

Igor: Welles se interessou por capturar um Brasil popular, tanto no que se refere aos jangadeiros quanto em suas tentativas de filmar o carnaval da Mangueira e a vida nas favelas do Rio de Janeiro. Isso não era exatamente algo novo, estritamente falando. No período dos chamados ciclos regionais – tentativas fragmentadas de se produzir cinema ao redor do Brasil antes que a produção dos estúdios se centralizasse no Rio de Janeiro – temos Gentil Roiz, que em 1925 fez o “Aitaré na Praia”, filme centrado em um pescador pobre que se apaixona por uma moça rica.

Outro pioneiro da época dos ciclos regionais foi o mineiro Humberto Mauro que, após alguns anos fazendo filmes no município de Cataguases, foi pro Rio de Janeiro trabalhar no sistema de estúdios, tendo se associado à Cinédia de Adhemar Gonzaga no começo dos anos 1930. Em 1935, Mauro fez “Favela dos Meus Amores”, que é considerado um dos primeiros filmes a retratar o cotidiano nas favelas. Sobre esse filme é possível apenas conjecturar, pois é considerado um filme perdido. Um dos grandes problemas do cinema brasileiro é a preservação, sempre foi a preservação. Filmes importantíssimos como o “Favela dos Meus Amores” ou “Moleque Tião”, filme que lançou Grande Otelo ao estrelato, estão perdidos, talvez nunca sejam recuperados. Descarte de cópias, incêndios em depósitos, condições precárias de preservação que estragam a película… é incalculável quantos filmes o cinema brasileiro já perdeu por esses motivos. Chega a ser irônico que “It’s All True” tenha passado por um problema similar, com seus rolos tendo sido considerados perdidos por décadas.

Considerando-se, por exemplo, os trabalhos de Gentil Roiz e Humberto Mauro, é difícil dizer que Welles tenha sido exatamente o primeiro a voltar suas atenções para um Brasil que vai além da imagem fabricada para o turismo. É muito arriscado cravar o punhal na mesa e conferir a qualquer cineasta o status de pioneiro, não só na história do cinema brasileiro, mas na história do cinema como um todo. Na minha visão, existem os cineastas que popularizaram determinadas convenções e maximizaram o alcance delas. A eles muitas vezes é atribuído o pioneirismo. Por essa ótica pode-se dizer que, de certa forma, Welles tenho tido um pioneirismo em seu interesse pelo Brasil popular. “Aitaré na Praia” e “Favela dos Meus Amores”, assim como “It’s All True”, eram tentativas isoladas de tentar compreender esse Brasil. A Vera Cruz, produtora paulista de curta longevidade, fez “Caiçara”. Assim como “Aitaré na Praia”, a produção tinha como foco a figura de um pescador. Eram primeiros passos necessários.

No fim das contas, as preocupações em filmar o Brasil profundo ou as periferias urbanas só se tornou prioridade para o cinema brasileiro de forma mais forte quando Nelson Pereira dos Santos fez “Rio, 40 Graus”, filme que foi ponto de partida para o movimento do Cinema Novo. Ele foi lançado em 1955, mas passou alguns meses retido pelo governo do estado do Rio de Janeiro, pois as autoridades não ficaram nem um pouco satisfeitas com um filme retratando a vida nos morros, o dia a dia de crianças pobres e as crenças religiosas de matrizes africanas. Isso em 1955, não era ditadura militar, a ditadura militar veio depois, era censura estadual numa época de suposta democracia. Estado do Rio de Janeiro, chefe de polícia Menezes Cortes. Quando o filme saiu foi uma revolução. Hoje as pessoas lembram de Glauber Rocha como a figura central do Cinema Novo, mas o Cinema Novo começou com Nelson Pereira dos Santos e “Rio, 40 Graus”. As preocupações que o Cinema Novo teve enquanto movimento, exemplificadas por filmes como o “Rio, Zona Norte”, também de Nelson Pereira dos Santos, “Cinco Vezes Favela”, produzido pelo CPC a UNE e “Esse Mundo É Meu”, de Sergio Ricardo, partiram de “Rio, 40 Graus”, e essas preocupações já tinham sido antecedidas por Welles no malfadado “It’s All True” e por figuras como Humberto Mauro e Gentil Roiz.

Acho difícil estabelecer que Welles tenha sido uma influência para o Cinema Novo ou para cineastas posteriores nesse sentido, tendo em consideração o fato de que “It’s All True” só viu a luz do dia em 1993, depois que os rolos do filme foram descobertos nos anos 80 e montados da forma supostamente mais próxima possível do planejamento original de Welles. A esse material também foram acrescentados alguns apêndices, tornando o “It’s All True” de 1993 uma espécie de documentário feito em cima do malfadado “It’s All True” de 1942. Algo similar com o que aconteceu com o “Cabra Marcado Para Morrer”, de Eduardo Coutinho – o crítico Jean-Claude Bernardet chega a estabelecer as denominações “Cabra 64” e “Cabra 84”.

Quando o material foi divulgado, em 1993, o próprio Welles já havia morrido. Cineastas como Glauber e Nelson Pereira não foram influenciados diretamente por “It’s All True” simplesmente porque não assistiram ao filme na época em que fundaram, junto com outros cineastas importantíssimos como Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade, o movimento do Cinema Novo. É possível dizer que o filme não finalizado de Welles continha alguns dos temas que seriam caros ao Cinema Novo décadas depois, temas esses que seriam explorados ad infinitum pelo cinema brasileiro mesmo bem depois da dissolução do Cinema Novo.

Ao filmar os jangadeiros e as favelas, Welles também foi pra rua, foi atrás de tomadas externas, diferindo em muito do sistema de estúdios que era vigente nos EUA e até mesmo em sua versão análoga presente no Brasil. Isso foi antes do neorrealismo italiano, que popularizou filmagens externas e narrativas que buscassem entender as mazelas do povo, e é considerado responsável por influenciar, dentre outras coisas, a Nouvelle Vague francesa e o Cinema Novo brasileiro. Nesse sentido, Welles antecipou o cinema brasileiro, o cinema italiano, o cinema francês e tantos outros… mas não se pode esquecer que, pro “It’s All True”, Welles filmou sequências em estúdios, então seria incorreto rotulá-lo como um filme pré-neorrealista.

No que se refere às condições de trabalho, Welles tinha uma equipe reduzida e muitas vezes as filmagens eram feitas de corpo a corpo com o objeto a ser retratado. Esse esquema de filmagens econômico – surpreendente, considerando que tratava-se de um cineasta diretamente egresso do sistema de estúdios hollywoodiano – também pode ser visto como um precursor de modos de produção que seriam adotados pelo Cinema Novo. “Uma câmera na mão, uma ideia na cabeça”. Essa máxima está longe da realidade, claro, havia planejamento e havia equipe, mas a essência da coisa está aí.

No final dos anos 1960 é unificado enquanto movimento o Cinema de Invenção, do qual Rogério Sganzerla fazia parte. Nele esses esquemas de produção tornam-se ainda mais enxutos. Por ironia do destino, Welles, que passou meses rodando um único filme no Brasil e não conseguiu finalizá-lo, teria muito o que aprender com Sganzerla. Junto com Julio Bressane, Rogério fundou a produtora Bel Air em fevereiro de 1970, e de fevereiro a maio os dois fizeram seis filmes juntos. “A Família do Barulho”, “Barão Olavo” e “Cuidado Madame”, do Bressane, e “Copacabana Mon Amour”, “Carnaval na Lama” e “Sem Essa, Aranha”, do Sganzerla. O “Carnaval na Lama” é um filme perdido, mas foi feito, foi produzido pela Bel Air.

Sganzerla era obcecado com Orson Welles, a ponto de o ter como objeto central de uma série de filmes e inserindo referências a ele em alguns outros. É possível que ele tenha visto, na forma como Orson Welles rodou “It’s All True”, um prenúncio das equipes reduzidas, das poucas diárias e do apreço pelos espaços urbanos populares que caracterizariam o Cinema Novo, o Cinema de Invenção e os outros momentos do cinema brasileiro que vieram depois. Sua fala não deixa de ser coerente no que diz respeito a isso.

– É possível considerar “It’s All True” um filme brasileiro?

R: Em primeiro lugar, é difícil considerar “It’s All True” um filme, a partir do momento em que ele não foi finalizado. A não ser que estejamos falando especificamente sobre o “It’s All True” de 1993. Nesse caso, não é um filme brasileiro, é um documentário completamente estadunidense que por acaso inclui imagens que foram filmadas no Brasil. Em quesito de linguagem, ele é montado completamente à moda dos documentários de televisão estadunidenses. A sequência dos jangadeiros tem como banda sonora efeitos que não estavam lá e foram adicionados posteriormente, um foley completamente artificial que faria Welles ter uma síncope. Não tem nada de brasileiro no “It’s All True” de 1993. No de 1942 é outra história.

Apesar de “My Friend Bonito” ter sido filmado no México, o grosso do material de “It’s All True” foi rodado no Brasil. O filme capturaria hábitos, costumes, ambientes e figuras tipicamente brasileiros – os jangadeiros, o carnaval, as favelas. A música brasileira teria um papel importante. Apesar disso, era um filme feito por um cineasta estadunidense pra uma produtora estadunidense, que era a RKO. Se finalizado, seria a rigor um filme estadunidense, mas poderia ser considerado um filme brasileiro sob certa ótica, assim como “Orfeu Negro” de Marcel Camus, que é um filme dirigido por um francês e produzido pela França, mas rodado no Brasil e falado em português, ou “O Beijo da Mulher Aranha”, do Hector Babenco, que é um filme produzido pelos EUA, feito por um diretor argentino-brasileiro e falado em inglês, mas rodado, em partes, no Brasil, com participação de atores brasileiros como Sonia Braga, Miguel Falabella e Milton Gonçalves.

Essas co-produções deixam tudo muito turvo. No fim das contas, você acaba não sabendo que nacionalidade atribuir ao filme. Esses exemplos, “Orfeu Negro” e “O Beijo da Mulher Aranha”, são filmes que deram certo, foram muito bem sucedidos na época, ganharam prêmios, de maneira que, no exterior, são vistos como filmes franceses ou filmes estadunidenses, não como filmes brasileiros. Tanto no exterior quanto no Brasil, parece haver uma espécie de falsa dicotomia que tem como base um preconceito secular com o cinema brasileiro: se o filme dá certo, é estrangeiro. Se o filme dá errado, é brasileiro.

É um preconceito muito grande com o cinema brasileiro, um negócio muito triste. Acho o cinema brasileiro um dos cinemas mais ricos do mundo. Temos cineastas geniais em nosso cinema, no passado e no presente da história do cinema brasileiro. Filmes incríveis. As pessoas se privam de conhecer um ótimo cinema por um preconceito embasado em um senso comum de que o país não produz bons filmes. Procure, pesquise, estude, assista. Cem anos de cinema brasileiro, coisas filmadas nos anos 1920 que estão disponíveis para quem quiser ver. Existem serviços de streaming que priorizam o cinema brasileiro em seu catálogo, como o SPCine Play. Muita coisa está disponível em DVD, algumas poucas até mesmo em Blu Ray Disc, na melhor qualidade possível. Para filmes mais obscuros é preciso se embrenhar nas veredas da internet, isso é verdade. Mas se fazem isso para desbravar o cinema estadunidense, não custa nada fazê-lo para descobrir o cinema brasileiro. Vale muito a pena.

– E finalizando, para quem se interessar em saber mais sobre a história de Orson Welles com o Brasil, que obras você indicaria?

R: Acho que a principal fonte de informações sobre “It’s All True” ao alcance de todos é “Orson Welles”, biografia do cineasta escrita por Barbara Leaming. O livro discorre sobre toda a vida de Welles de forma aprofundada e completa, tendo umas boas páginas dedicadas a explicar tudo acerca de “It’s All True”. Leaming trabalhou diretamente com Welles, que estava em seus últimos anos de vida, entrevistou-o uma série de vezes; se não me engano publicou o livro logo antes de Welles morrer. No Brasil, o livro foi publicado pela editora L&PM. Acho que infelizmente está fora de catálogo, mas é possível encontrar edições usadas disponíveis para compra na internet.

“Grande Otelo”, biografia do ator brasileiro escrita pelo jornalista Sergio Cabral, também tem um capítulo dedicado à passagem de Welles pelo Brasil, falando um pouco sobre as filmagens de “It’s All True” e a relação entre o ator e o cineasta. Publicada pela Editora 34 em 2007, a obra infelizmente também está fora de catálogo, sendo possível adquirir apenas edições usadas.

A versão de “It’s All True” lançada em 1993 e os filmes de Rogério Sganzerla sobre Welles – “A Linguagem de Orson Welles”, “Nem Tudo É Verdade” e “Tudo É Brasil” – também são fontes interessantes para quem quiser se aprofundar mais no assunto.

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