“Tape Porã Arandu”: Cinemas (e outras questões) indígenas no oeste de Santa Catarina
“Tape Porã Arandu”: Cinemas (e outras questões) indígenas no oeste de Santa Catarina

“Tape Porã Arandu”: Cinemas (e outras questões) indígenas no oeste de Santa Catarina

Foto: Carta do filme “Tape Porã Arandu”, de Beatriz Fernanda das Chagas Regis

Por Renan Bernardi

Na sexta-feira, 18/08/23, aconteceu o evento “Cultura e Cinema na Aldeia”, com a exibição de dois curtas-metragens de temática indígena no auditório do Bloco E do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFH) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis.

“Tape Porã Arandu”, dirigido por Beatriz Fernanda das Chagas Regis, e “A Musicalidade do Povo Guarani M’Byá”, de Édina Barbosa Farias, foram os filmes exibidos e comentados pelas diretoras, juntamente de Sabrina Alvernaz (doutora em Letras e especialista em cinema indígena) e do público presente na sessão.

Além de compartilharem assuntos, os dois curtas também se assemelham por tratarem das questões indígenas em um mesmo território: o estado de Santa Catarina.

Em “A Musicalidade do Povo Guarani M’Byá”, a diretora indígena Édina (que também é estudante de Cinema na UFSC) apresentou a importância da música no cotidiano de seu povo através de gravações de performances musicais e de depoimentos de membros da comunidade.

Foto: Édina Barbosa Farias, por Felipe Maciel

Já em “Tape Porã Arandu”, Beatriz conta a história do povo Guarani Mbyá de Araça’í, cujo território, localizado na região entre as cidades de Cunha Porã e Saudades, foi tomado por latifundiários que expulsaram a população do local em três ocasiões, sendo a primeira delas ainda em 1930. Desde a última vez que foram despejados da terra de Araçaí (como a região era nomeada pelos indígenas), os Guaranis estão acampados provisoriamente na terra Kaingang de Toldo Ximbangue, localizada em Chapecó, enquanto aguardavam a liberação de suas terras: uma espera que já dura mais de 20 anos.

Além de apresentar a história da retirada do povo de seu local originário, o filme de Beatriz também retrata a circularidade dessa violência: o agronegócio que expulsa os indígenas de suas terras, é o mesmo que os emprega em frigoríficos quando estes se vêem obrigados a trabalhar fora de suas comunidades.

Após as exibições e discussões realizadas no auditório, Beatriz conversou comigo e contou um pouco sobre a trajetória de seu filme, a criação do Coletivo Cultural Guarani Mbyá, que atuou ativamente nessa produção, e falou também sobre Karai Tupã Macimino Mariano de Morais, indígena centenário que é o principal personagem e narrador do curta-metragem.

Foto: Beatriz Fernanda das Chagas Regis, por Felipe Maciel

Tudo começou em 2019, quando Beatriz estava realizando o trabalho de campo que resultou em sua primeira pesquisa publicada, “Ara guydje pya’u: o ritual de ano novo guarani na terra indígena Toldo Chimbangue”, feito para sua conclusão de curso em Ciências Sociais na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), em Chapecó.

Dessa pesquisa, surge a ligação de Beatriz com a comunidade Guarani Mbyá presente em Toldo Ximbangue. Experienciando o cotidiano do povo regularmente, o primeiro trabalho registra três meses dessa convivência, mas a relação entre Beatriz e eles se estendeu e perdura até hoje.

Mestranda do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da UFSC, Beatriz entende que a antropologia está ligada com a familiaridade, resultando que, ao entrar em um cotidiano, as experiências vão sendo incorporadas e relacionadas com os afetos e as relações de amizade que vão sendo construídas. Dessa forma, ela foi conhecendo a história, a cultura e as lutas políticas que envolvem aquela comunidade e, a primeira coisa que chamou sua atenção, foi justamente a relação dos Guaranis com a música e a performance. “Estando na terra indígena, eu percebi que parte da cultura deles estava completamente associada a isso que nós, que vivemos na cultura ocidentalizada e colonizada, chamamos de arte”, conta a diretora.

Coletivo Cultural Guarani Mbyá

Disso surge a ideia de buscar, através de editais de incentivo à cultura, viabilizar recursos para fortalecer essas práticas. Com a interlocução da professora indígena Kátia Moreira, foi definido, junto com a comunidade, a necessidade da criação do Coletivo Cultural Guarani Mbyá, como forma de oficializar as produções e tornar as atividades do povo aplicáveis para os editais públicos.

Através do prêmio recebido pela Fundação Catarinense de Cultura em 2020, a primeira ação do coletivo foi a reconstrução da Opy, a casa de reza do povo Guarani, como forma de preservação do patrimônio material da comunidade. E para fins de comprovação da realização do processo, foi realizado um filme para documentar o projeto e permitir o acesso público à história dos indígenas que vivem relocados em Toldo Ximbangue.

A produção aconteceu em uma parceria da produtora Lua Caolha, de Chapecó, com o próprio povo da comunidade, que recebeu formação cultural para a realização e compôs cerca de 85% da equipe de trabalho do projeto. Esse documentário pode ser acessado na página do YouTube do Coletivo Cultural Guarani Mbyá:

Além disso, também foi produzido um EP do Grupo Djakaira, composto por membros da comunidade, chamado Apyka Arandu.

Tape Porã Arandu

Posteriormente a isso, Beatriz, Kátia e o Coletivo Cultural perceberam que, apenas falar sobre a cultura indígena, ou mesmo prover essa reconstrução da Opy, não era suficiente. “A gente percebe que, o que a comunidade passa, é um certo desamparo social e político. […] e, com essa conexão já estabelecida com os produtores audiovisuais, surgiu a vontade coletiva e compartilhada entre nós e o pessoal da terra indígena, em dar continuidade. Então foi aí que surge o ‘Tape Porã Arandu’, através da interlocução com o cacique da época, que era o Miguel Barbosa, que acabou falecendo alguns meses antes da aprovação do projeto e que inclusive é homenageado no filme. E também em colaboração com a Kátia, que sempre foi minha principal interlocutora, que me auxiliou muito nesse processo, dando inclusive o título para o filme.”

“Tape Porã Arandu” significa “belo caminha da sabedoria”. Elas chegaram nesse nome através da relação de conhecimento e ancestralidade do Tupã Karai Macimino Mariano de Morais que, com 101 anos, protagonizou o filme contando a história de seu povo e as mazelas que sofrem há décadas. “Além disso, a ideia era passar essa resiliência deles, esse tape, esse caminho, tem uma presença simbólica muito forte. O povo Guarani tem muito essa história de ‘caminhar para uma terra sem mal’, né? Então esse ‘belo caminho’ seria essa trajetória”, afirma Beatriz.

Com as expulsões sistemáticas acontecendo desde a colonização da região do oeste catarinense, hoje, no Toldo Ximbangue, os Guarani Mbyá da terra de Araça’í devem estar na sua quarta ou quinta terra ocupada.

Sendo assim, trazer a figura centenária de Macimino pareceu ser a melhor escolha para retratar todos esses anos dessa difícil trajetória. “A figura do Tupã Karai precisava ter mais visibilidade e poder falar, trazer essa mensagem, e nada mais justo do que falar sobre trajetórias, sobre caminhos, sobre a beleza da sabedoria de um homem centenário, que vivenciou uma coisa inimaginável para os tempos que a gente vive hoje. Ele vivia num momento em que a Mata Atlântica era muito densa nessa região de Cunha Porã, Saudades e Chapecó”, justifica a diretora.

Nascido em 1922, Macimino foi expulso de sua terra pela primeira vez em 1930. “Então ele é nossa conexão com o passado e com a nossa percepção das transformações da sociedade. Enquanto ele viu a comunidade dele sendo destruída, ele viu a cidade sendo construída.”

Foto: Felipe Maciel

Realizado de forma conjunta entre os produtores e pesquisadores da cidade com a comunidade indígena, “Tape Porã Arandu” foi roteirizado por Beatriz e Macimino junto com Ilka Goldschmidt, da Margot Filmes. Também da Margot, Cassemiro Vitorino foi responsável pela montagem do documentário, realizada entre Chapecó e Florianópolis.

Já a trilha sonora foi feita pelos membros do Coral da Comunidade Guarani Ara Poty, junto do Tupã Karai, de uma maneira muito intuitiva. “A minha forma de orientação ali com eles foi assim: eu fui até a terra indígena, apresentei o filme cru, sem nada, e aí sugeri pra eles pegar os instrumentos e ir fazendo as experimentações e sonorizações enquanto a gente assistia, pra gente ir vendo o que ficava bom. E foi a partir daí que a gente começou a construir essa sonoplastia”, conta Beatriz.

Além disso, as músicas que compõem as outras cenas foram selecionadas pelos seus significados. “Uma delas, que é no momento de lembrança do Macimino em relação à sua esposa falecida, a Maria Cecília, que foi uma figura muito importante pra luta da educação Guarani na terra do Toldo Ximbangue, é em homenagem ao trabalho de pesquisa dela, feita para a UFSC, sobre o pássaro Tangará. Então, nesse momento de lembrança, a gente toca uma música sobre o Tangará. E a última música, no fim do filme, a tradução dela seria algo sobre ‘pegar o que é meu’, então quando começa a aparecer as imagens do território, a música tem essa relação de reivindicação da terra tomada.”

Acampamento Terra Livre (ATL)

“Tape Porã Arandu” teve sua pré-estreia na própria terra indígena de Toldo Ximbague e, além da comunidade Guarani de Araça’í, ainda contou com a presença do povo Guarani de Ara Poty, que vieram de sua comunidade, há alguns quilômetros do local, para assistir ao filme.

Portanto, essa exibição que aconteceu na UFSC foi a primeira mostra oficial para o público interessado. E a ocasião que gerou esse evento do dia 18, onde o curta foi exibido, tem motivações que vão além do filme. “Como está rolando o Acampamento Terra Livre (ATL) nessa semana aqui no Morro dos Cavalos (em Palhoça-SC), o Macimino me ligou no fim de julho e me disse que viria para o ATL, que eles estavam se articulando para conseguir o ônibus para vir. Aí, logo eu falei com a minha orientadora pra gente fazer uma apresentação do filme na UFSC, com a presença deles aqui. Só que imprevistos ocorreram, eles não conseguiram o dinheiro pra vir e a gente teve que manter, porque o evento já estava organizado.”

Foto: Felipe Maciel

A partir de agora, o curta ficará por cerca de um ano indisponível para o acesso livre, por conta de requisitos de festivais de cinema (que Beatriz deseja estar inserindo o filme) que pedem para que as produções não estejam presentes em plataformas de exibição. Mas, após esse período, a diretora deseja que ele esteja disponível no Youtube. Além disso, o filme também será distribuído em DVDs para o repositório da Fundação Catarinense de Cultura e com cópias sendo enviadas diretamente para a terra indígena.

O filme servirá de base para a dissertação de Mestrado da Beatriz em Antropologia Social, mas, para além desse objetivo, a ideia da diretora para o filme é que ele seja um objeto de reflexão, debate e também de referência para novos projetos culturais. “Eu acho que o cinema, instrumentalizado junto com a antropologia, tem um efeito muito positivo dentro do debate político que está ocorrendo hoje. A minha principal sensação quando eu comecei a trabalhar com audiovisual lá na terra indígena, é que, até então, eu mesma não entendia qual era a ‘questão indígena’ que era passada na televisão. As manchetes, os jornais, eles não conseguiam dar conta da complexidade que é o problema do território. Muitas vezes, você vê imagens dispersas dos indígenas fazendo manifestações em Brasília, mas você não entende a realidade dessas pessoas, eu tinha uma sensação de um vazio de significados ali.”

Para concluir, Beatriz nos falou da importância desse debate estar em circulação, para que a complexidade dos assuntos que envolvem a questão indígena no Brasil sejam tratados com profundidade. “Eu acho que o filme, nessa linguagem de curta metragem, possibilita a aplicação dentro de sala de aula, pra gente conseguir explicar para alunos com teor de profundidade, dando esse entendimento de ancestralidade, esse entendimento temporal, essa valorização que os povos indígenas dão para as pessoas mais velhas.”

Foto: Sabrina Alvernaz, Édina Barbosa Farias e Beatriz Fernanda das Chagas Regis, por Felipe Maciel

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