
Foto: Felipe Maciel
Por: Renan Bernardi
O horário era precisamente 22:22 no meu celular quando vi Fred04 caminhando em direção ao palco. Na minha frente, um cara usava o característico chapeuzinho de Chico Science. Pensei: “Tudo alinhado. Tá acontecendo”.
Promovido pelo Saravá Cultural, no dia 10/06 o Matura Floripa recebeu Mundo Livre S/A com um show em homenagem aos 30 anos do movimento Manguebeat, cujo repertório, além de passar por várias fases da banda, também incluía clássicos de Chico Science & Nação Zumbi.

Foto: Felipe Maciel
Fred e Chico foram dois dos principais articuladores desse movimento que, no começo dos anos 90, agitou freneticamente a cena cultural de Recife e Olinda para, em poucos anos, acabar influenciando gerações de músicos de todo o Brasil.
Através da estreia do festival Abril Pro Rock em 1993 (que acontece até hoje no Recife), as bandas pernambucanas e suas propostas inovadoras ficaram conhecidas no centro do país e, logo em 1994, Chico Science & Nação Zumbi lançariam Da Lama Ao Caos, produzido por Liminha; e a Mundo Livre também estrearia com Samba Esquema Noise, produzido por Carlos Miranda através do Banguela Records, o “selo dos Titãs”.
Intensificando a proposta antropofágica que caracteriza algumas vertentes da música brasileira ao longo da história, o Manguebeat busca se afirmar absolutamente regional, trazendo elementos do forró, maracatu e frevo para, através do conceito da Antena Parabólica Enfiada na Lama, captar influências exteriores, principalmente o dub, o postpunk e o hip-hop, criando assim uma linguagem universal.
Além da Nação Zumbi e da Mundo Livre S/A, o movimento serviu como plataforma para introduzir ao mercado nacional artistas como Mestre Ambrósio (banda que Siba participava), Otto (que fez parte do Mundo Livre como percussionista e compositor), Karina Buhr e o Cordel do Fogo Encantado.

Foto: Felipe Maciel
O show começou no Matura com uma versão cavaco-dub de “A Cidade” e, ainda de Chico, seguiu com uma releitura igualmente particular de “Samba Makossa”.
Incluindo o próprio repertório e as canções da primeira fase da Nação Zumbi, o show também contou com uma versão de “No Olimpo”, canção do álbum Fome de Tudo (2007), que já tem Jorge Du Peixe nos vocais.
Fazendo essa ligação entre as duas bandas através daquele que é o ídolo maior de ambas, “Mexe Mexe”, canção que Jorge Ben presenteou para a Mundo Livre S/A, animou muito o público e ainda incluiu um trecho da melodia de “Crazy Frog” em meio a execução.
Na clássica “Melô das Musas”, a galera começou a gritar para que apagassem a luz do lugar. Pedido de foi apoiado pelo próprio Fred e concedido pelo bar. Mas, o momento “ninguém é de ninguém” só durou essa música.
A banda foi alternando as ambiências do lugar com “Computadores Fazem Arte”, onde rolou uma bela roda punk, sendo seguida de uma versão reggae e lenta de “A Praiera”, que fez todo mundo cantar junto.
O auge dessa experiência satisfatoriamente dúbia veio logo na sequência: a canção “A Bola do Jogo”, que começa em uma ciranda, fez abrir um imenso círculo onde a galera se pôs a girar para, no refrão hardcore da mesma música, se jogar em um pogo animado.

Foto: Felipe Maciel
Terminando com “O Outro Mundo de Xicão Xurucu”, Fred aproveitou da decoração em homenagem aos povos indígenas que o Matura dispõe em seu teto, para falar sobre a importância desse debate em nossa sociedade, coisa que ele e a banda há tempos também vêm pautando em suas músicas.
Após o show, conversamos com Fred 04 no camarim para falarmos sobre esses e outros temas em torno da obra e da história da Mundo Livre S/A. Confira como foi:
– Um assunto inevitável de ser falado aqui é sobre os 30 anos do movimento Manguebeat, que você ajudou a conceituar e que, hoje, a Mundo Livre S/A está celebrando aqui no Matura. Minha questão é: como você vê os impactos do movimento, estética, política e sonoramente, ressoando hoje com esse distanciamento histórico de três décadas?
Fred 04: Bom, até tive chance de comentar antes de uma das faixas hoje que, essa cena toda, e o Mundo Livre mais especificamente, antecipou vários conceitos que viriam se tornar pautas mais evidentes hoje em dia: multiculturalismo, inteligência artificial, questão indígena. A própria cena lá em Recife, a forma como aconteceu – porque não existia festival, não existia rádio apoiando, não existia empresário, não existia gravadora e tal – era um conceito tal como uma ocupação mesmo. A gente resolveu ocupar, cavar um espaço, criar uma cooperativa. Enfim, e essa questão tecnológica também a gente antecipou em muito tempo. E outra coisa é a questão da diversidade e da raiz, né cara? Essa imagem da parabólica na lama, de quanto mais enraizado, mais universal.
– O repertório anunciado para esse show fala sobre “Chico Science e o Manguebeat”. Queria que você falasse um pouco sobre a relação que você teve com Chico na concepção do movimento e como você vê o impacto que a figura dele têm na história da música brasileira.
Fred 04: Chico era o cara que animava qualquer ambiente. A gente era de uma época que, pra formar seu próprio background de música, sua identidade musical, era muito diferente de hoje em dia porque você não recebia tudo mastigado pelo algoritmo. Era uma carência absurda, demorava 3, 4, 5 anos pra um grande disco inovador da Europa chegar no Brasil. Então, a gente tinha que catar informação e, da mesma forma, a cena existiu porque, lá de Barra de Jangada, de Rio Doce, de Piedade, Candeias, ouvia-se falar de uma movimentação musical no outro lado da cidade, a galera pegava ônibus e ia. Porque a gente tinha que correr atrás da informação, né? Então é muito diferente de hoje em dia. E Chico era um ativista, cara. Chico era um cara que não se conformava só em ter ideias e tal, ele tinha que colocar em prática. Eu aprendi muito com ele, esse lance do ativismo dele. E é muito louco o quanto isso representou pra autoestima da periferia de Recife, de Pernambuco. A gente teve lá movimentos como o Armorial, né? Que era um movimento acadêmico, que todos os ícones, assim como em vários outros locais, têm “sobrenome”, né? Suassuna! Valença! E ele era o Science! Ele era um cara da periferia. O primeiro cara da periferia que virou estátua em Recife, saca? As estátuas lá são todas de nobres, barões, duques e o caralhaquatro e ele é o primeiro malungo que vira nome de túnel, vira estátua, avenida, tudo isso.

Foto: Felipe Maciel
– Traçando essa relação entre você, Chico e a Nação Zumbi, que é fundamental pra gente entender o que é o Manguebeat, eu consigo observar que, além do contexto das cidades de Recife e Olinda e uma visão muito abrangente e antropofágica envolvendo a música regional e universal, esses dois grupos têm em Jorge Ben uma espécie de guia para a criação da sonoridade. Como você entende o impacto da obra de Ben na formação dessas duas bandas? Por que ele foi tão importante pro Manguebeat?
Fred 04: É, velho…como eu comento na música lá [a já mencionada “Mexe Mexe”, que Jorge Ben fez para o Mundo Livre S/A em 2000], eu tinha 12 anos quando o A Tábua de Esmeralda foi lançado e foi uma revolução na minha cabeça, então eu ouço desde aquela época. E, na verdade, quando a galera da cena do Mangue se encontrava pra ouvir música e tal, eles ficam até meio surpresos quando eu trazia discos antigos do Jorge Ben, que era uma coisa que não se comentava muito na época. E logo eles se apaixonaram também e depois criaram o Los Sebosos Postizos: um projeto feito pra celebrar o legado de Jorge Ben. E ele é aquela história, né velho? “Esse samba que é misto de maracatu”: então, assim, sempre foi um cara que fora da curva do samba tradicional, do pop tradicional. Então, pra mim, A Tábua de Esmeralda sempre foi meu disco de cabeceira e acabou realmente influenciando muita gente lá.
– Em janeiro do ano passado vocês lançaram o álbum “Walking Dead Folia (Sorria, Você Teve Alta!)”, que reflete naturalmente o período mórbido da pandemia e do fascismo bolsonarista pelo qual passamos nos últimos anos. Mais de um ano após esse lançamento, um novo governo e uma situação sanitária menos alarmante mudam as percepções que o disco propõe? Como você relaciona esse último trabalho com a atual situação da banda e do país?
Fred 04: E até emblemático que, por exemplo, a gente tocou na quarta-feira agora (07/06) no Circo Voador, no Rio, e não à toa, fazia justamente 6 anos que a gente não tocava no Rio. O último show que a gente fez lá foi na Universidade Federal Fluminense, em Niterói. E foi justamente quando teve o golpe, onde se iniciou o desmonte das universidades, do Ministério da Cultura, de todos os editais. Então, eu tenho muito orgulho desse disco do ano passado, onde a gente realmente trouxe à tona, não só nas faixas, mas também no conceito e na capa, o momento histórico do país, no sentido mais crítico e mais trágico. E, eu acho que hoje a gente vive uma situação de reconstrução, né? A expectativa é de que a gente comece a colher os frutos de uma batalha, de uma guerra que foi travada pela democracia, da qual a gente foi ativista, e a gente se orgulha de ter sido ativista.
Setlist:
01 – Abertura
02 – A Cidade (Chico Science)
03 – Samba Makossa (Chico Science)
04 – Édipo, O Homem Que Virou Veículo (Fred 04)
05 – Free World (Fred 04/Mundo Livre S/A)
06 – O Mistério do Samba (Fred 04/Marcelo Pianinho)
07 – O Velho James Browse Já Dizia (Fred 04/Gustavo Joe/Walter Areia/Washington Fernando)
08 – No Olimpo (Jorge Du Peixe/Lúcio Maia/Dengue/Gilmar Bola 8 /Pupillo/Toca Ogan)
09 – Meu Esquema (Fred 04)
10 – Mexe Mexe (Jorge Ben Jor)
11 – Pastilhas Coloridas (Fred 04/Tony Regália/Fábio Malandragem)
12 – Musa da Ilha Grande (Fred 04)
13 – Computadores Fazem Arte (Fred 04)
14 – Bolo de Ameixa (Fred 04/Xico Sá/Mundo Livre S/A)
15 – A Praieira (Chico Science)
16 – A Bola do Jogo (Fred 04)
17 – Livre Iniciativa (Fred 04/Tony Montenegro)
18 – O Outro Mundo de Xicão Xukuru (Fred 04/Zenilda Maria de Araújo/Bac/Xef Tony/Areia/Marcelo Pianinho/Fábio Goró)