Padê em Florianópolis: A celebração do encontro de Juçara Marçal com Kiko Dinucci
Padê em Florianópolis: A celebração do encontro de Juçara Marçal com Kiko Dinucci

Padê em Florianópolis: A celebração do encontro de Juçara Marçal com Kiko Dinucci

Foto: Andressa Colbalchini

Por Renan Bernardi

Em 2008, Juçara Marçal já era uma cantora de trajetória respeitável. Fazia parte do projeto de investigação e reinterpretação de músicas do folclore brasileiro chamado A Barca, e também do grupo Vésper Vocal.

Kiko Dinucci, por sua vez, acumulava experiências que iam desde o metal, passando por bandas de punk-rock como a Eletric Sickness até chegar no samba e nele mergulhar fundo a partir do começo do século XXI.

Esses caminhos tão diferentes se encontraram na encruzilhada do ano de 2004, onde nasce a amizade entre esses dois artistas que hoje são nomes essenciais para entendermos os caminhos da música brasileira contemporânea.

Gravado entre 2006 e 2007 e lançado oficialmente em 2008, o álbum Padê é o marco fonográfico desse encontro. Majoritariamente composto por canções de Kiko que abordam suas inspirações terrenas pelas religiões de matriz africana, o trabalho também passa por influências que atravessam a carreira da dupla, como o sambista baiano Batatinha (em “Imitação”) e o compositor Luiz Tatit, do Grupo Rumo (em “Velha Morena”). Além do Rumo, a vanguarda paulista parece também dar as caras em forma de inspiração para o “Samba Estranho” de Paulo Padilha, que nos lembra as letras sci-fi dos artistas daquele movimento. Assim como a vanguarda, também a história do samba paulista serve de chão para Kiko na canção que encerra o álbum: “Roda de Sampa”.

Apesar de reunir um conjunto magnífico de canções que muito têm a ver com o universo da música afro-brasileira, o álbum não foi recebido com a atenção que merecia na época de seu lançamento. Mas, felizmente, ele gerou esse encontro tão importante para o nosso presente (e futuro!) musical.

De lá pra cá, juntos ou separados, Juçara e Kiko estiveram presentes em trabalhos com o Metá Metá, o Passo Torto, nos álbuns Encarnado e Delta Estácio Blues e mais uma grande variedade de projetos.

E só 10 anos depois de sua estreia, em 2018, é que o Padê ganha um reconhecimento que lhe é cabido. Com o lançamento de seu vinil (feito justamente para comemorar os 10 anos do álbum) pela Goma Gringa, a dupla começou a realizar shows com esse repertório: sempre em dupla, misturando a abordagem intimista com a percussividade cada vez mais sofisticada do violão de Kiko dando caldo para a voz inquestionável de Juçara.

Foto: Andressa Colbalchini

E mais do que simplesmente comemorar os 10 anos desse encontro, esse show acabou tendo uma demanda considerável desde então, sendo um dos repertórios mais aclamados da dupla e um formato recorrente em suas agendas.

Ultrapassando os limites de São Paulo e mostrando a força desse conjunto de canções e da intepretação desses artistas, o show do Padê chegou pela primeira vez em Florianópolis-SC no dia 30/04/23 (domingo), 15 anos depois do lançamento do álbum e 5 depois dele tornar-se devidamente aclamado pelo público.

Padê em Florianópolis

Promovido pela Casa de Noca e o Bugio Centro, o show fez parte de um evento com diversas atrações gratuitas que aconteceram na rua Victor Meirelles, centro da cidade.

Com Bolachada Vinil garantindo a sonoridade do local antes e depois do show, o dia ainda contou com a apresentação dos blocos Africatarina e DeSkaReggae, além do DJ Kibo encerrando a noite.

Foto: Felipe Maciel

Foi por volta das 17h que Juçara e Kiko subiram no palco para apresentar um repertório que, tendo como firmamento as canções do álbum de estreia da dupla, passeia também por canções gravadas (ou não) por eles em outros projetos. Destaque para uma inédita que vem fazendo parte dos shows da dupla (lembro de ter ouvido eles tocando-a no show do álbum Rastilho que aconteceu no Festival Saravá, em 2021) e também para “Odumbiodé”, parceria de Kiko e Juçara com Rodrigo Campos que faz parte do EPDEB, lançado como extra do álbum Delta Estácio Blues, o mais recente de Juçara.

Mas, o grande destaque foi mesmo a versão da dupla para “Batuque”, de Itamar Assumpção. Gravada originalmente no álbum ao vivo Às Próprias Custas S.A (1982), a canção fala diretamente da ancestralidade afro-brasileira e a resistência negra no Brasil. Colocando lado a lado a figura icônica de Zumbi com a sua descendência direta (“meu pai, minha mãe, minha vó”), Itamar dá um panorama muito visceral das questões raciais que atravessam a história de nosso país, em visão macro e micro. E aqui, na apresentação potente do violão de Kiko e da mágica voz de Juçara, ganhou uma força impressionante.

Foto: Andressa Colbalchini

O silêncio do público nas canções mais intimistas, o coro geral em sucessos como “Atotô” e o fato de umas seis pessoas treparem em cima de um prédio para ver o show de local privilegiado, mostra bem a aceitação que o som dessa dupla tem em nossa geração, mesmo aqui em Santa Catarina: tão longe de onde as canções e carreira de ambos os músicos foram gestadas.

Foto: Felipe Maciel

Desde que esse show foi confirmado por aqui, a pergunta que me fica é sobre os motivos que levam esse álbum a ser continuadamente revisitado ao longo da trajetória recente dos artistas. É claro que sua importância histórica (afinal, o álbum debuta o encontro entre Juçara e Kiko) é inegável. O repertório é realmente de canções maravilhosas e ótimas para se cantar. Sua ligação muito direta com as religiões de matriz africana reforça o peso das músicas e a presença delas no público. Mas, quantos álbuns também incríveis são esquecidos e perdidos no tempo? Por que esse (ainda bem!) conseguiu ganhar essa sobrevida tão significativa?

Talvez o que há de futurístico na ancestralidade, tema central desse repertório, é que possa nos explicar o porquê desse álbum ainda chamar tantos públicos pelo Brasil. E, sendo assim, podemos esperar que ele ainda ressoe muito!

Foto: Felipe Maciel

Setlist:

1 – Padê (Kiko Dinucci)

2 – São Jorge (Kiko Dinucci)

3 – Machado de Xangô (Kiko Dinucci / Fabiano Ramos Torres)

4 – Cabocla Jurema (Candeia / Nina Alvarenga)

5 – Inédita (Juçara Marçal / Kiko Dinucci)

6 – Atotô (Kiko Dinucci)

7 – Samuel (Rodrigo Campos)

8 – Imitação (Batatinha)

9 – Batuque (Itamar Assumpção)

10 – Bate Baú / Coruja Batuqueira (André Bueno)

11 – Odumbiodé (Juçara Marçal / Kiko Dinucci / Rodrigo Campos)

12 – Engasga Gato (Kiko Dinucci / Fabiano Ramos Torres) / Casa Barata (Domínio Público)

Bis:

13  – Vias de Fato (Kiko Dinucci)

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