
Foto: Felipe Maciel
Por Renan Bernardi
Como mostramos na primeira parte da nossa reportagem, a relação de Gilberto Gil com a capital catarinense mostra bem como essa cidade é um território em disputa.
A ocasião de sua apresentação do dia 26 de março na Maratona Cultural, como parte da programação de aniversário de Florianópolis, trouxe os conflitos ideológicos existentes na Ilha de Santa Catarina para o centro da cidade.
A batalha da representatividade
O fato do pedido de homenagear Gil como cidadão honorário de Florianópolis (proposto por Afrânio Boppré, do PSOL, e Carla Ayres, do PT) ter sido negado pela câmara de vereadores gerou repercussão nacional, afirmando o conservadorismo que já é conhecido nesse estado.
Reforçando esse estigma, no dia 20 de março (seis dias antes do show de Gil e seis dias após a negação de sua homenagem), um pedido realizado pelo vereador Maikon Costa (PL) propôs dar o mesmo título (de cidadão honorário) para o empresário Luciano Hang (o “véio” da Havan). Ao contrário do que aconteceu com Gilberto Gil, essa proposta foi aceita pela câmara de vereadores.
Mas, como eu venho falando, esse é um território em disputa.
Antes do show de Gil acontecer no Largo da Alfândega, os bastidores dessa apresentação serviram como um desses campos de batalha. Enquanto o atual prefeito da cidade, Topázio Neto (PSD), resolveu entregar para o compositor um livro que cataloga as orquídeas de Florianópolis, os vereadores Marquito (PSOL), Padre Pedro (PT) e a já citada Carla Ayres (PT) aproveitaram a ocasião do encontro com Gil para lhe entregar pessoalmente uma Moção de Aplausos e Reconhecimento, proposta pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina.
Marquito também entregou para Gil “uma obra de arte feita com renda de bilro e fitas de cetim bordadas com trechos de músicas do artista”. Segundo a postagem em seu Instagram, a arte com rendas “representou a ancestralidade da Ilha de Santa Catarina. As fitas coloridas foram escolhidas como referência às fitinhas do Senhor do Bonfim, típicas de Salvador, terra natal de Gil”.
Além disso, ainda nos bastidores, a vice-reitora da UFSC, Joana Célia dos Passos, entregou para Gilberto Gil um ofício com o requerimento que busca conceder o título de doutor honoris para o compositor.

Outras batalhas
Enquanto representantes públicos batalhavam pela narrativa de Florianópolis quanto a sua relação com Gilberto Gil, as ruas do centro da cidade enfrentavam outra disputa.
Tomado de pessoas por todos os lados, espalhadas pelos diversos palcos, teatros e espaços expositivos que faziam parte da vasta programação da Maratona Cultural, o centro histórico também recebeu, no mesmo domingo da apresentação de Gil, a Procissão do Senhor dos Passos, que acontece nessas mesmas imediações desde 1766, sendo essa de 2023 a sua 257ª edição.
Além do atraso de algumas apresentações que foram adiadas por acontecerem em locais próximos do caminho da procissão, tal situação causou um choque cultural e certo estranhamento das duas partes: do público religioso e do público das apresentações da Maratona. Esse estranhamento é melhor detalhado no fio que Kalil de Oliveira fez em sua conta no Twitter.
“Quando subo nesse palco / minha alma cheira a talco”
Ainda antes do show, eu e Felipe Maciel (responsável pelas imagens exclusivas dessa reportagem) resolvemos passar pelo prédio da ALESC que, como visto no documentário Os Doces Bárbaros (Jom Tob Azulay, 1976), foi onde Gil foi julgado pelo porte de maconha há quase 50 anos.

Foto: Felipe Maciel

O prédio inclusive fica logo atrás de onde foi instalado o Palco Claro Música, em que o cantor se apresentaria dali há poucas horas.
Como não conseguimos o acesso de imprensa para a área privilegiada (em frente ao palco), nos apertamos até chegarmos na grade onde, além de apreciar e registrar a presença de Gil, Felipe aproveitou para fazer uma cobertura-da-cobertura do evento.

Com abertura da banda Tijuquera (Florianópolis), as atividades do palco principal da Maratona Cultural iniciaram por volta das 17h30 no domingo (26). Aparentemente, também com certo atraso devido a Procissão do Senhor dos Passos.
Próximo das 19h (horário previsto para o início do show), as representantes do patrocinador Fort Atacadista e o seu mascote (o “Fortão”) subiram ao palco para distribuir bolas (chutadas pelo mascote) para a plateia. De onde eu estava, só conseguir ouvi vaias para a enrolação publicitária que se apresentava. O povo queria ver Gil: mais um espaço em disputa.

Com sua banda posicionada, contando com Mestrinho (acordeom), Bem Gil (guitarra e baixo), Nara Gil (backing vocal), Marcelo Costa (bateria), Guilherme Lirico (guitarra e baixo) e Danilo Andrade (teclado), Gilberto Gil inicia seu show com o clássico “Tempo Rei” sendo apresentado para um público que, segundo estimativas, calculou-se ser de cerca de 60 mil pessoas.

Logo na sequência, Gil canta “A Novidade”, canção sua em parceria com os Paralamas do Sucesso cuja a letra foi feita em Florianópolis. A história dessa canção, que mostra a visão do compositor sobre a desigualdade social da Ilha, também foi contada na nossa primeira edição dessa reportagem.
Mas, não sei se por protocolo já estabelecido em suas apresentações ou se por afirmação ideológica do cantor, “A Novidade” teve, perto do seu final, a adição incidental de “Rebel Music (3 O’Clock Road Block)”, de Aston Barrett e Hugh Peart, que é um clássico do repertório de Bob Marley. De qualquer forma, essa citação sendo apresentada num palco em Florianópolis fez com que a rebeldia fosse afirmada, propositalmente ou não.
E o público parece ter entrado nessa onda. Logo após essa música, ouvia-se a plateia que, entre gritos mais genéricos de “Gil / Eu te amo”, também bradava coisas como “Gil / Não liga não / Você é Patrimônio da Nação” e “Cidadão honorário”.
Ele, muito simpático e receptivo com as mensagens, chamava a cidade de “Flópis” e conversava sobre as canções entre uma e outra. Na sequência de “A Novidade”, emendou-se pelo repertório de Bob Marley que foi revisitado, traduzido e abrasileirado por ele.
Baseadaço por Gil
A negação do título de cidadão honorário pela câmara de vereadores gerou muita polêmica nas redes sociais e, como era de se esperar, incentivou um certo sarro em torno de uma decisão tão conservadora.
Sendo assim, na tarde daquele domingo, começou a ser amplamente espalhada uma corrente pelo WhatsApp intitulada “Campanha Baseadaço por Gil!”, que organizava o público para “acender, como forma de resgate histórico e galhofa, muitos baseados ao mesmo tempo durante o show […] Entre a terceira e a quinta música”.


Provavelmente não foi impactado por essa ação que Gil, encaminhando-se para a parte final do seu show, falou abertamente sobre a história de “Sandra” (também presente na primeira edição dessa reportagem), sua prisão na cidade e seu internamento em São José/SC (Grande Florianópolis).
Colaborando com essas manifestações contrárias a negação de seu título (que inclusive contavam com faixas com pedido de desculpas para Gil), grande parte do imenso público cantou os versos de “Nos Barracos da Cidade” e seu refrão tão condizente com a atual situação: “Oh, uô, gente estúpida / Oh, uô, gente hipócrita”.

Finalizando o show com “Toda Menina Baiana”, esse histórico show de Gilberto Gil em “Flópis” terminou sem o clássico “bis”. Estranhamente, também reparei que poucos foram os pedidos de “mais um!” depois do fim da apresentação ser anunciado. Talvez, por respeito a Gil e sua avançada idade. Seria então, mais uma das manifestações de respeito feitas pelo público da cidade nessa sua passagem pela Ilha. Por essa mesma Ilha que, por diversas vezes, ignorou sua importância e o tratou com desrespeito.
Mas, como eu venho falando, a relação de Gilberto Gil com Florianópolis é um território em disputa.

Setlist:
– “Tempo Rei”
– “A Novidade” (música incidental: “Rebel Music [3 O’Clock Road Block]” – Aston Barrett e Hugh Peart)
– “Não Chore Mais” (“No Woman No Cry” – Vincent Ford)
– “Vamos Fugir”
– “Esperando na Janela” (Manuca Almeida, Raimundinho do Acordeon e Targino Gondim)
– “Respeita Januário” (Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga)
– “Xote das Meninas” (Luiz Gonzaga e Zé Dantas)
– “Eu Só Quero um Xodó” (Anastácia e Dominguinhos)
– “Drão”
– “Estrela”
– “Esotérico”
– “Palco”
– “Andar com Fé”
– “Sandra”
– “Aquele Abraço”
– “Nos Barracos da Cidade”
– “Maracatu Atômico”
– “Madalena (Entra em Beco, sai em beco)” (Isidoro)
– “Toda Menina Baiana”