
Foto: Estadão
Por Renan Bernardi
A relação de Gilberto Gil, um dos mais aclamados cantores e compositores brasileiros, com a cidade de Florianópolis/SC é marcada por atravessamentos históricos que mostram bem como a capital catarinense sempre foi um território em disputa ideológica e cultural.
Em 2023, Gil se apresentou na cidade como parte do Festival Saravá. Mas, mesmo tendo um público muito considerável em Santa Catarina, essa apresentação foi a primeira de Gil no estado desde 2013, quando esteve em Lages. E, na capital, ele não tocava há 15 anos.
Porém, a situação de Gilberto Gil com Florianópolis não é simplesmente indiferente para o cantor que, muito pelo contrário, teve episódios marcantes de sua vida e carreira na Ilha de Santa Catarina.
Doce barbárie
Em 1976, Gilberto Gil, acompanhado de Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa, rodava o Brasil na turnê do grupo Doces Bárbaros, que reunia pela primeira vez os quatro baianos em um mesmo projeto. Nesse mesmo ano de 76, o grupo lançou seu primeiro e homônimo álbum, gravado ao vivo no Rio de Janeiro. Além disso, foi lançado o filme documentário (também homônimo) dirigido por Jom Tob Azulay que registra, além de imagens de shows e entrevistas, uma tensa situação que aconteceu na capital catarinense.
Após a estreia do projeto em Curitiba, os Doces Bárbaros passaram por Florianópolis, que, como diz Caetano no documentário: “inicialmente não tinha sido incluída no roteiro. Mas, Gil e eu gostamos muito da cidade e exigimos que fosse”. Logo na primeira noite na capital, a turnê passou por problemas e teve que ser pausada: Gil, assim como o baterista Chiquinho Azevedo, foram presos e condenados a um ano de retenção pelo porte de maconha. Dias depois, seria determinada a internação de ambos em um hospital psiquiátrico para “recuperação”.
O Delegado Elói “da tóxicos” (provavelmente, do que seria hoje a Delegacia de Combate às Drogas – DECOD), um dos responsáveis pela ação policial que levou ao julgamento, em entrevista concedida para o já mencionado documentário, diz que investigação foi “de campana”: os policiais ficaram acampados em frente ao hotel onde os Doces Bárbaros, a banda e a equipe estavam alojados logo que eles chegaram na cidade. Durante a noite, eles deram “uma geral” nos apartamentos, dizendo ser uma prática de rotina, visto que havia uma “denúncia procedente de Curitiba” referente a porte de entorpecentes. Neste mesmo registro, Guilherme Araújo, empresário de Caetano e Gil desde a década de 60, falou que a justificativa dos comissários era de que “não precisava de mandato de busca, por se tratar de tóxicos”.
Gil foi o primeiro a ser “visitado” pelos comissários. Lá, encontraram (segundo o mesmo delegado responsável pela ação, que cedeu a entrevista citada acima) um cigarro de maconha na sua carteira e “mais um pacotinho de maconha que daria pra fazer mais uns dois cigarros”. Após essa apreensão, o delegado deu voz de prisão para Gilberto Gil.

Foto: Retirada do livro Gilberto Gil – Todas as Letras (organizado por Carlos Rennó)
No pedido de acusação feito no julgamento de Gil, realizado no prédio da ALESC (no centro de Florianópolis), o acusador trata o compositor como “criminoso” e, a maconha, como “erva maldita que tanta infelicidade vive causando a milhares de lares brasileiros”. Ele diz que a nulidade da condenação não poderia ser considerada e que “[a prisão de Gil] servirá de exemplo para a mocidade que acompanha temerosa a conclusão desse inquérito”.
Em outro depoimento, proferido pelo que parece ser o advogado de defesa de Gil, argumenta-se que a situação deve ser tratada sem “o enfoque da pura repressão”. A sua defesa se baseia na condição de que o compositor seria uma pessoa em dependência química e que a sua proposta é “não puni-lo, mas recuperá-lo”.
Essa proposta parece ter sido a mais considerada pelo júri, visto que o julgamento determinou não a sua prisão, conforme havia sido acusado, mas sim a sua internação no Instituto São José (São José/SC, na Grande Florianópolis).
Em depoimento para o documentário, enquanto aguardava pelo julgamento, Gil, ao lado de Chiquinho, diz que “nada disso pode nos abalar muito. Quer dizer, não pode nos abalar além da superfície do corpo e da alma”. E que “a gente não tem vergonha de nada, não tem dúvidas a respeito do que a gente é. A gente é isso, né? a gente é isso, somos pessoas de hoje: século XX, 76, apóscalypso!”

“Na primeira noite quando nós chegamos no hospício”
E, assumindo a sua condição, mesmo que descabida e exagerada, Gilberto Gil fez de sua experiência no Instituto São José aquilo que bem sabe fazer: uma canção. E, ao invés de bradar com a repressão conservadora e moralista que o havia colocado ali (vale lembrar: em 1976, o Brasil ainda vivia em um governo ditatorial), Gil fez “Sandra”, cujo texto fala dos “personagens daqueles dias que vivi entre Curitiba e Florianópolis”, segundo depoimento do compositor para o livro Gilberto Gil – Todas as Letras (organizado por Carlos Rennó). Ainda nesse depoimento, ele detalha:
“Maria Aparecida, Maria Sebastiana e Maria de Lourdes me atenderam no hospício durante o internamento imposto pela Justiça enquanto eu aguardava o julgamento. […] Lair era uma menina de fora, uma fã que foi lá me visitar. Salete era de lá. […] Cíntia: também de Curitiba, como Andréia. […] E Dulcina, que era a mais calada, a mais recatada de todas na clínica”.
“Sandra, citada no final da letra, era minha mulher, que preferiu não ir a Florianópolis e com a qual eu associei a ideia do hexagrama da torre, tirado do I Ching, um dos meus livros de cabeceira naquele período: a que tomava conta de tudo; onde eu estivesse, o seu olhar espiritual me acompanharia; seu ente se espraiaria, estendendo-se por todas as mulheres com quem eu convivesse”.

Gal, Caetano e Bethânia ficaram em Florianópolis esperando a liberação de Gilberto Gil por quase um mês, para retomarem juntos a turnê. Turnê que, mesmo com o infeliz incidente, foi um sucesso de público e crítica e foi até revistada pelos quatro em 2002 com o projeto Outros (Doces) Bárbaros, que gerou uma turnê e, novamente, um filme documentário, dessa vez dirigido por Andrucha Waddington.
Cidadão desonrado
Lembram do argumento de acusação que defendia a prisão de Gil em 76? Ele dizia que “[a prisão] servirá de exemplo para a mocidade que acompanha temerosa a conclusão desse inquérito”.
Pois bem: esse argumento usado pelo defensor é muito semelhante ao defendido pelo vereador Gilberto Gemada (Podemos) agora em 2023, que, ao negar a proposta de conceder a Gil o título de cidadão honorário, disse que tal concessão poderia “servir como incentivo ao uso de entorpecente em nossa cidade”.
Sugerida por Afrânio Boppré (PSOL), acompanhado de Carla Ayres (PT), a proposta de conceder o título de cidadão honorário para Gilberto Gil foi rejeitada pela câmera de vereadores do município, que na mesma sessão aprovou a entrega da Medalha Antonieta de Barros (jornalista e professora conhecida por ter sido a primeira mulher negra brasileira a assumir um mandato político popular) para a deputada bolsonarista Ana Campagnolo. Ambas votações aconteceram no dia 14 de março, em que se completaram 5 anos do assassinato de Marielle Franco e Anderson Pedro Mathias Gomes, acontecido no Rio de Janeiro/RJ.
Essa não foi a primeira vez que Afrânio buscou conceder o título para Gilberto Gil. Em 2020, acompanhado de Roberto Katumi Oda (PSD), tal proposta foi defendida como um pedido de desculpas da cidade ao cantor. E também foi rejeitada na votação da Câmera de Vereadores.
“Ó, De um lado esse carnaval / Do outro a fome total”
Além de “Sandra”, Florianópolis também serviu de cenário e inspiração para outras canções de Gilberto Gil. Segundo um post de Leonel Camasão (PSOL), a canção “A Gaivota” “fala sobre a liberdade após ser solto, citando ‘a ilha’ e a ‘lagoa’, como referências à Florianópolis”.
Mas há ainda uma outra letra, essa composta para uma melodia de Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone (Paralamas do Sucesso) que parece sintetizar melhor a relação e a percepção de Gilberto Gil sobre Florianópolis. Segundo o mesmo livro Gilberto Gil – Todas as Letras, em 1986, o compositor estava na capital catarinense quando Herbert ligou para ele pedindo por essa letra, cuja gravação instrumental lhe foi enviada por sedex. Essa parceria se tornou a canção “A Novidade”, gravada pelos Paralamas no álbum Selvagem (1986) e por Gil no seu Unplugged Ao Vivo (1994).
Em depoimento para o livro, Gil diz: “o quarto do hotel dava para o mar, e eu estava escrevendo na mesinha de frente para a janela, com a visão do mar ao fundo. Daí a ideia da sereia que vinha dar à praia”.
Mas, mais que uma mera alusão aos mistérios oceânicos, “A Novidade” fala sobre a desigualdade social que Gil observava na Ilha, cujas belezas e prazeres que ela tem a oferecer são muitas vezes surrupiados. A letra diz: “A novidade era o máximo / Do paradoxo estendido na areia / Alguns a desejar seus beijos de deusa / Outros a desejar seu rabo pra ceia”.
Seu refrão, que toma proporções globais a partir da visão de Gil sobre a realidade florianopolitana, traz um panorama que sintetiza as relações entre a cidade e o compositor que até aqui foram apresentadas:
“Ó, mundo tão desigual / Tudo é tão desigual / Ó, de um lado esse carnaval / Do outro a fome total”.
Mas, afinal: que desigualdade é essa? Bom, ao contrário do que tanto se preocupa – hipocritamente – o vereador Gilberto Gemada, o “uso de entorpecente em nossa cidade” é uma realidade incontestável, pouco combatida e até característica de boa parte da população da Ilha. E Gilberto Gil, um homem que foi invadido em sua privacidade para ser preso pelo simples porte pessoal de uma substância, é muito mais que um “incentivador” do uso. Muito mais do que um “criminoso”, como a acusação de seu julgamento se referiu a ele. Gilberto Gil – compositor e cantor mundialmente respeitado, ex-Ministro da Cultura, membro da Academia Brasileira de Letras – foi tratado de maneira desigual. Com a mesma desigualdade que são tratadas pessoas pretas, desde sempre, nesse país.
Florianópolis completou 350 anos no dia 23 de março e, como parte da programação de festividades do aniversário do município (a Maratona Cultural 2023) Gilberto Gil se apresentará novamente na cidade no domingo, dia 26, e contará com a cobertura da Revista Artemísia na segunda parte dessa edição.
O vereador Gilberto Gemada envergonha até os mais podres entre seus pares. Nojo.
É inacreditável a postura não só desse vereador como dos outros que votaram contra a indicação do título de cidadão para Gilberto Gil! É uma mistura de racismo com inveja de um dos nossos maiores expoentes da música contemporânea no Brasil e no mundo !
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