
Há no histórico da música brasileira um consenso bem estabelecido sobre a importância de nossas cantoras ao longo das décadas. Carmen, Maysa, Elizeth, Aracy, Elza, Elis, Maria, Gal, Vanusa, Rita, Ângela, Luiza, Marisa, Adriana. Ad infinitum. Nos quase 100 anos em que nossa música serviu como comunicação de massa, as vozes-musas de mulheres sempre apresentaram muito valor, tanto cultural quanto econômico.
Na contra-mão contraditória e violenta desse fato, a mídia de nosso país categoriza e minimiza essas vozes em pseudo-gêneros como o de “cantoras brasileiras”, de modo a entender que essas artistas não tenham particularidades e diferenças entre si, como se fossem apenas intérpretes vazias de belas canções (geralmente compostas por homens). E naquilo que tange o corpo e a vivência dessas e de todas as mulheres de nosso país, é sabido com que agressividade e ignorância o machismo institucional e aplicado do Brasil as atinge.
Dado esse contexto, chegamos ao século XXI com vozes femininas ainda muito presentes. E mais do que cantar, essas vozes não se calam! Reinventam-se e redefinem padrões e discursos, mostrando visões e metavisões diferentes e críticas ao que nos é estabelecido há centenas de anos pelo patriarcado vigente.
Pesquisador, ativista, agitador e colecionador da nossa música brasileira, o curitibano Gabriel Bernini, convidado pela Editora Barbante, realizou o livro “Ondas Sísmicas: 90 discos de cantoras brasileiras do século 21”, onde traz um apanhado de resenhas, através de uma seleção pessoal, sobre os principais lançamentos musicais femininos entre 2003 e 2020.
No livro, encontramos comentados álbuns de nomes reconhecidos de nosso cenário atual, como Gaby Amarantos (Treme, 2012), Ana Frango Elétrico (Little Electric Chicken Heart, 2019), Letrux (Em noite de climão, 2017), Clarice Falcão (Problema Meu, 2016) e Céu (Céu, 2008 e Tropix, 2016). Além de outros nomes de menor visibilidade, como Estela Cassilatti (Peixes = Pássaros, 2017), Flavia K (Janelas imprevisíveis, 2019) e Kika (Pra viagem, 2012).
Em campanha de pré-venda, Gabriel Bernini falou com a gente sobre o livro, seu lançamento, sobre as mulheres da música brasileira do nosso século e suas revoluções e dificuldades para exercê-las.
Para ajudar na campanha de pré-venda do livro, acesse o link: www.catarse.me/ondassismicas
Sobre o nome “Ondas Sísmicas”:
O “Ondas Sísmicas” é um nome abstrato, mas que tem como objetivo representar poder, um afronte, um abalo. Eu tenho 10 anos de convivência em grupos de Facebook e, com base em tudo que eu vi e ouvi, acho que a proposta do livro – colocar artistas brasileiras contemporâneas numa posição de estudo – e quem o escreve – um homem gay – são sim um afronte.
Sobre sua pesquisa e o surgimento da proposta do livro:
Eu nunca imaginei que a minha pesquisa pudesse ser catalogada assim, de maneira profissa e com o engajamento que a campanha está tendo (isso me surpreende todos os dias, até me assusta). Naturalmente eu sempre gostei de cantoras e, depois de processos internos, me tornei um grande entusiasta da cultura brasileira. Juntei as duas coisas e temos uma pesquisa em cantoras contemporâneas do Brasil.
A proposta do livro veio no meu inbox do Facebook pela editora Barbante. Eles me viam em grupos de vinil, gostavam do que eu escrevia e da maneira que eu escrevia.
Inicialmente era pra ter sido um livro de entrevistas, mas de imediato sugeri que fosse um livro de resenhas, então escrevi o texto cru em 15 dias, em setembro de 2020.
Sobre a inclusão de Liniker, Linn da Quebrada e Jup do Bairro, pontuando a transgeneridade:
Minha preocupação número 1 com esse projeto foi a diversidade. Quando eu pensava no retorno do livro, não pensava em retorno financeiro e quando pensei em seu conteúdo, não pensei em artistas puramente refinadas ou elitizadas. Eu sempre pensei na diversidade. Sou gay, tenho noção de movimento social desde os 13 anos – me orgulho de quem sou e trago isso para todos os meus projetos.
Sobre o papel da mulher na nossa música – presente, passado e futuro:
Eu não fiz um livro feminista. O feminismo não é meu local de fala, pois sou homem. Eu fiz um livro sobre o feminino, gosto sempre de pontuar porque morro de medo de ser acusado de estar me apropriando de uma questão que não é minha. O livro é mais algo do tipo “sou fã de mulheres e quero homenageá-las” e nunca “vou levantar essa bandeira porque sei que ela é lucrativa”.
Tenho dificuldade em enxergar o futuro, mas o presente para as mulheres brasileiras da música é positivo – em 2021 foram quase 20 discos deste nicho e ainda falta um tempo pro ano acabar. O problema do presente, e esse é um problema da minha geração, é o culto às divas/divos americanos e, como se não bastasse, o desprezo por tudo o que vem do Brasil. Eu já fui ridicularizado muitas vezes, por pessoas jovens, apenas por gostar de artistas do Brasil. Existe até um dado que diz que o Brasil é o principal fã-clube para tudo que vem de fora. Que triste, que pena!
A visão do passado é clichê, do mundo machista e opressor, mas é verdade. Eu morro de pavor quando ouço a Gal Costa cantando um eu-lírico masculino, se referindo a si mesma no masculino. Acho que essa opressão foi a cartada para a criatividade de algumas mulheres, que criaram coisas incríveis, mas que infelizmente ficam restritas ao inframundo.
Penso que o culto alienado aos artistas americanos prejudica a nossa compreensão sobre nossa realidade como brasileiros. Abra o Twitter hoje (31.8.21) e verá os comentários nefastos sobre a polêmica entre a Mãeana e a Roberta Sá. Comentários de slut-shaming, pessoas tentando criar uma rinha entre as duas como se fossem duas divas americanas, pessoas FELIZES em verem duas artistas brasileiras, das quais nunca ouviram falar, brigando. Então eu acredito que o que impede a produção cultural brasileira, especialmente a feminina, é essa americanização do consumo que existe de maneira tão grave aqui no Brasil. A segunda colonização já aconteceu, está acontecendo agora.
Existe uma pulsão destrutiva, em especial por parte da comunidade gay, por mulheres que não se parecem com a Lady Gaga ou com a Katy Perry. E acontece que nenhuma artista brasileira se assemelha a essas duas. Então existe muita sátira, muito deboche, muita pulsão ruim contra essas artistas e esse é o problema do presente, então espero que pro futuro isso se resolva.
Vivemos em um país onde Linn da Quebrada e Jup do Bairro são attention seekers, são pretensiosas. Mas em que Arca e Sophie são visionárias. Isso me entristece, mas me cansa. E esse cansaço às vezes vira uma violência. “Ondas Sísmicas” é um livro violento.
Sobre o processo de seleção para o livro:
Pra escolher quem iria participar do meu livro, eu fui à minha estante e escolhi os discos a dedo, no mesmo dia tinha a lista de discos que iria resenhar.
Eu gosto da produção feminina num geral, então, no livro existem discos de pop, de reggae/dub, jazz, bossa, hip hop, samba & muitos outros.
Sobre a pré-venda:
Estamos nos últimos 10 dias para a pré-venda acabar e tenho a certeza de que vamos atingir a meta. É muito assustador sair de um lugar de anonimato total e do nada arrecadar 25 mil reais. Eu não esperava, acho que não tinha parado pra pensar. Quando abrimos o financiamento e eu vi aquela barra da meta, eu vomitei. Duvidei de mim & quem duvida de si pode chegar longe – mas sempre chega exausto por lutar contra as próprias energias e pensamentos.
Foram dois meses muito árduos, senti energias jogadas em minha direção (positivas & negativas) e ainda estou assimilando tudo.
Estou ansioso para o que vem por aí. Esse projeto vai ter continuação em outros formatos!