
Fotos: Simone Ramos / Projeto gráfico: Arthur Martins
Ninguém é sobre uma pergunta sem resposta feita por Rafael Oliveira, que estreia seu trabalho solo. O artista explora sutilezas políticas, estéticas e ontológicas sobre a vida moderna, cantando temáticas que abordam a beleza de uma experiência subjetiva não-centrada na figura da satisfação pessoal até a exaltação dos “jacobinos negros” de 1791. Esse arcabouço complexo é unido em ‘Balanço Oculto’, trilogia de EPs anunciada pelo artista.
Balanço Oculto Vol. 1 é o prólogo de uma série de três EPs, que se encerrará com seus respectivos ato e epílogo. O primeiro volume foi produzido entre 2017 e 2020 nos bairros da Cidade de Deus, Lapa e Flamengo, no Rio de Janeiro. Da primeira à última e terceira faixa, o artista propõe um trabalho autoral que conversa com a forma musical consagrada pelo sambarock.
O disco foi gravado na base que o artista chama de “Força Bruta/Taj My House” (Rio de Janeiro/RJ) e é resultado da colaboração de Ninguém com ChinDub (baterista e produtor musical da cena dub/reggae de São Paulo). Toques jamaicanos podem ser percebidos não apenas na assinatura de produção do trabalho, mas também no baixo de Fred Gomes (compositor, multi-instrumentista, cantor e um dos expoentes da cultura sound system nacional). Ninguém reúne nos coros de cada faixa a Orchestra Binária (trio que integra com Helder Dutra e Marcio Silva), além do artista multimídia Arthur Martins em participações musicais e na parte gráficas de todo o projeto (em parceria com Simone Ramos, que assina as fotografias).

Para conhecermos um pouco mais do projeto, Rafael Oliveira nos conta como foi o processo de surgimento de ‘Ninguém’, a escolha dos nomes e nos explica as faixas deste EP:
Sobre o nome do projeto “Ninguém” e nome do EP “Balanço Oculto”
“Ninguém” me pareceu um bom nome para meu projeto quando me dei conta das muitas vezes em que pareceu impossível responder sobre quem eu era ou qual era meu lugar dentro da Orchestra Binária. Acho que meu lugar no trio sempre foi estranho, ainda que jamais entre Helder, Márcio e eu. Talvez por ser quem menos tinha domínio da matéria propriamente musical, essa falta de qualidade musical pessoal no ato de criar música parecia difícil de ser situada para terceiros.
Eu acredito que essa indeterminação moldou a concepção de “Balanço Oculto”. Como meus impulsos musicais mais próprios de criação sempre estiveram situados num plano fundamentalmente rítmico, a ideia de criar música em termos de um balanço é bastante estimulante para mim (sem contar a conotação autorreflexiva e crítica que a palavra sugere). Ao mesmo tempo, a noção de oculto possui diferentes camadas de sentido nesse trabalho, acho.
Pensando na Orchestra Binária, eu poderia dizer “oculto” para me referir ao tipo de música que há subjacente às camadas de ruído e barulho que produzida naquela discografia. Em relação ao meu projeto atual, a ideia de oculto revela as descobertas que conquisto depois da música que crio como Ninguém.
Sobre a escolha de dividir o projeto em uma trilogia
De modo geral, eu vejo uma elegância no número três. Em termos filosóficos, acho que ele possui uma certa expressividade. A tradição alemã carrega implicitamente o três na forma dialética sistematizada no pensamento de alguns de seus principais expoentes (em especial, Hegel e Marx). Nesse domínio de considerações “filosóficas”, a música do Jorge Ben Jor, que é uma das referências de base para o projeto como um todo, também estimula interpretações em relação ao número três por causa das constantes alusões a figuras herméticas e cristãs.
Também acho que apelei à ideia de trilogia como um princípio prático de trabalho. Numa palavra, como não me encanta imaginar a liberdade em termos de “suspensão de regras”, pois eu a estimo como a capacidade de inventá-las e executá-las, acho que estabelecer uma trilogia como princípio foi um modo de arranjar a experiência de criação musical que decide perseguir.
Sobre as faixas do EP
Depois que descobri minha motivação para um projeto solo e encontrar um formato musical para ele, pedi a guitarra do Marcio (do trio Orchestra Binária) emprestada e comecei as composições. Considero essas músicas a partir de uma teoria do teatro. Aprendi com amigos que a tragédia grega, como gênero teatral, se distingue em (três) prólogo, ato e epílogo. Nesse sentido, eu acredito que “Ninguém cantou”, “Desde São Domingos” e “Os homens dos nomes das coisas” se reúnem como um tipo de prólogo, introduzindo o desenvolvimento subsequente do projeto.
“Ninguém cantou” abre o EP e explicita de modo mais extrovertido essas intenções. Ela passa uma desconfiança sobre a autenticidade como um valor intrínseco à genuína expressão artística. De forma irônica, busca emular “lugares comuns” do estilo musical que reivindico.
“Desde São Domingos”, faixa que dialoga com a Revolução Haitiana por meio de uma leitura particular sobre a polêmica relação entre a independência do país em 1791 e o iluminismo europeu, celebra a figura do jacobino negro como a mais bela expressão política do nosso tempo. Sob a chave de interpretação que dá sentido à faixa, a música é animada pela incrível cena em que haitianos vencem franceses cantando a Marselhesa.
“Os homens dos nomes das coisas” fecha o EP observando o caráter instrumental do nosso modo de ser. Como uma espécie de ensaio sobre a vida moderna e industrial, a música procura delinear a natureza francamente vazia das nossas práticas, mas sem deixar de sinalizar suas qualidades para o desenvolvimento do espírito humano e seu potencial (como civilização, como barbárie, e vice-versa).