As Cartas – Sem título
As Cartas – Sem título

As Cartas – Sem título

Imagem: Luísa

Por Luísa Madureira

escrevo isso pra desbaratinar o efeito que a música gospel, escolha do motorista da carona, tem sobre mim. momento infeliz. esse tinido ecoa no fundo da minha cabeça e se embala nesse impulso melancólico. o lema é perceber-se mais do que se percebe o individuo errante, que cheio de fissuras cambaleia descompassado aos pés dessa vida tirana. percebe como é tirana? observo o cara que dorme sentado no banco ao lado, balançando com o carro em movimento. não sei seu nome, apesar de estar balançando em repouso próximo a mim, não sei se quero saber. ele me disse ao chegar e eu retruquei o meu. puf, esqueci alguns segundos depois, prefiro dizer que inconscientemente excluí essa memória pra armazenar outras. acredito que ele também tenha esquecido. dorme tranquilo o cara sem nome de pés pequenos envoltos por sandálias de aspecto messiânico. fico feliz que ele dorme, eu não conseguiria, lembro do que li na noite passada, algo como: “tengo mi cranio trizado pelos golpes de mi imaginación”. calada, esboço um micro-sorriso por pelo menor sentir o golpe. prefiro ser banal em silêncio hoje. me sinto chateada. banal. são dois dias e duas noites dormindo pobremente, penso sobre a chapaceira que é o sono, a falta dessa fuga necessária gera apocalipsinhos diários que nos conduzem ao erro. o sono é o próprio fio condutor da melancolia. é gerador e apanhador simbólico. é uma cidade abandonada. tão intencional quanto a norma, tão verdadeiro quanto um soluço. hoje eu não sei o que há, busco entender essa dimensão vazia num estado substancial de sonho. sinto-me naufragada, com minha verdade escondida nos sedimentos. para entender-me hoje, solucionar o mistério desse naufrágio, seria necessário drenar o atlântico inteirinho. as paixões fundadoras, o conflito, a amnésia e o erro. a migalha escondida no tapete da sala. o agnóstico que fala em deus pela força do hábito. todos os cartões de visita que eu já joguei no lixo. um desktop organizado. qualquer que seja o destino que minhas paixões tenham sofrido, essas serão inevitavelmente apagadas pela destruição do tempo. existe um mistério final aqui. percebe como é tirana?

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