Clube da Encruza e a nova estética da música brasileira
Clube da Encruza e a nova estética da música brasileira

Clube da Encruza e a nova estética da música brasileira

Foto: José de Holanda
Foto: José de Holanda

Por Renan Bernardi

Caso você não conheça nenhum dos nomes a seguir, saiba que está perdendo de se inteirar sobre uma nova estética da música brasileira, avessa às mesmices da MPB elitizada e sem sal. Avessa também às simples “reinvenções” colonizadas de nossa música baseadas em misturas de elementos estrangeiros com os nossos.

Na apresentação oficial transmitida em 2017 no programa Cultura Livre, estavam lá presentes Kiko Dinucci, Juçara Marçal, Thiago França, Romulo Fróes, Marcelo Cabral e Rodrigo Campos (ainda acompanhados do baterista Sérgio Machado). Esses nomes, aliados a outros que citarei ao decorrer desse artigo, formam o Clube da Encruza, que apesar de já ter se apresentado nessa formação completa, trata-se mais da união de artistas que vem trabalhando juntos desde 2008 e, assim, criando um grande movimento cultural que desnorteia os rumos caretas da música brasileira e mostra toda potência inventiva e criativa de nossa música.

Seguindo a descontinuada linha marginal da MPB, os membros do Clube da Encruza, conhecidos também como uma espécie de atual vanguarda paulistana, inovam as propostas iniciadas nos anos 70 e 80 e trazem novos elementos para ela, tornando a música brasileira novamente original. Se vê claramente nas composições e concepções estéticas desses artistas as influências de nomes como Jards Macalé, Itamar Assumpção, Grupo Rumo, Premeditando o Bréque (Premê), Tetê Espíndola, Tom Zé, Os Mulheres Negras e demais artistas que investiram em desconstruir e renovar a música brasileira, logicamente guiados por precursores como Nelson Cavaquinho, Adoniran Barbosa, Noel Rosa e outros.

Os artistas relacionados ao Clube da Encruza são de extrema importância para a sobrevida que a música brasileira vinha precisando na última década, onde as composições focadas em “brasilidades” eram marcadas (salvo exceções, é claro) por artistas que se utilizam de arranjos minimalistas para justificarem uma criatividade pobre.

Nesse movimento, além dos projetos assinados como solo que quase todos os membros têm, formaram-se bandas como Metá Metá e Passo Torto, além de terem seus artistas envolvidos em projetos diversos de grandes nomes de épocas plurais da música brasileira, tais como:  Criolo, Elza Soares, Tulipa Ruiz, Vicente Barreto, Lucas Santtana, Douglas Germano, Serena e Anelis Assumpção, Ava Rocha, Gui Amabis, Suzana Salles, Rogério Skylab, Mariana Aydar, Ná Ozzetti, Luiz Tatit e, mais recentemente, com o professor Jards Macalé.

E para entendermos melhor como se formou essa união de artistas que vem bagunçando (ainda bem) os padrões da MPB em tantas frentes, buscarei explicar a trajetória do Clube da Encruza em linha cronológica.

Investida de renovação acústica

Podemos dizer que o ponto de partida para a série de produções realizadas pela Encruza se deu com o álbum Padê, realizado na parceria entre Kiko Dinucci e Juçara Marçal e lançado em 2007. Nele, canções relacionadas ao candomblé já dão indícios do que os dois viriam a formar no Metá Metá. O álbum conta inclusive com músicas que depois foram regravadas na banda.

Em 2008, Kiko lança Pastiche Nagô, em parceria com o Bando Afromacarrônico (e também com Juçara aparecendo em algumas faixas). Este álbum é o marco definitivo no novo-samba-torto paulista, que através do estilo muito particular de tocar de Dinucci, tornaram-se características fundamentais da maioria das produções do Clube da Encruza.

Em 2009, um novo nome se une ao grupo que tanto vem produzindo desde então. Douglas Germano, novamente em parceria com Kiko Dinucci, cria o Duo Moviola, dando um maior requinte ao samba torto e realizando canções muito interessantes no álbum O Retrato do Artista Quando Pede.

Em 2010, Kiko lança Na Boca Dos Outros, trazendo diversos convidados para tocar suas composições. Entre eles, destaque para Maurício Pereira, d’Os Mulheres Negras.

O ano de 2011 foi talvez um dos mais importantes para o Clube da Encruza, pois nele foram lançados os primeiros álbuns de grande expressão dessa turma.

Unindo Thiago França à já formada dupla de Kiko com Juçara, o Metá Metá foi formado e lança o seu primeiro e homônimo álbum, que logo colocou o grupo como uma das grandes revelações daquele ano. Enfatizamos aqui o “uma das grandes” a maior delas foi outra, mas que também pertence à Encruza.

Kiko Dinucci, Thiago França e também Rodrigo Campos eram alguns dos nomes presentes na produção de Nó Na Orelha, o álbum de “estreia” do Criolo. Tido como o grande lançamento daquele ano, Nó na Orelha traz uma mistura inigualável de música popular brasileira com hip hop criando grandes sucessos como “Não Existe Amor Em SP”, “Subirusdoistiozin”, “Linha de Frente” e mais.

Outro personagem importante que se une ao – ainda não formalmente formado – Clube da Encruza em 2011 é Rômulo Fróes. Músico de carreira já construída em experimentos pela música brasileira, Rômulo está presente na concepção do Passo Torto, banda formada junto com Kiko Dinucci, Rodrigo Campos e Marcelo Cabral.

O primeiro (e homônimo) álbum da banda dá uma maior abrangência de possibilidades naquilo que já vinha sendo construído por Kiko em Pastiche Nagô e mistura com a expertise e indiscutível sabedoria musical dos demais membros.

Investida de renovação elétrica

Após os nomes dos membros da Encruza conseguirem certa projeção com todos esses trabalhos já mencionados, a partir de 2012 eles começam a desvendar novas possibilidades sonoras.

Em um profundo estudo de combinações melódico-harmônicas das guitarras de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, essa dupla desenvolve uma nova estética de renovação da música brasileira através de instrumentos eletroacústicos que resultou nos álbuns mais interessantes da década de 10.

A primeira produção onde essa estética pode ser percebida é no álbum MetaL MetaL do Metá Metá, lançado em 2012. Deixando o minimalismo característico do primeiro álbum um pouco de lado, as guitarras marcam o disco e, aliados aos arranjos e metais de Thiago França, constrói um começo para os novos caminhos (ou seria, encruzas?).

Em 2012 também é lançado Sambanzo, álbum solo de Thiago França com estética bem carnavalesca que conta com participação de grande parte do Clube da Encruza, resultando – como sempre – em um ótimo disco.

Ainda no mesmo ano, Rodrigo Campos lança seu álbum solo chamado Bahia Fantástica. É o primeiro trabalho do músico assumindo a guitarra, que já demonstra a particularidade característica de um músico vindo do samba ao trocar os instrumentos acústicos pelos elétricos.

Essa mesma particularidade pode ser observada no segundo álbum do Passo Torto, lançado em 2013. Chamando-se justamente de Passo Elétrico, nesse trabalho as guitarras de Kiko e Rodrigo criam camadas sensacionais que confundem os padrões do que seria harmonia e melodia. Tudo isso aliado aos baixos precisos de Marcelo Cabral e a voz e as ótimas letras de Rômulo Fróes.

Em 2014, a estrela de Criolo volta a brilhar nas mãos produtoras de Kiko e Rodrigo. Convoque Seu Buda é um disco muito mais pesado do que o primeiro, o que faz sentido em comparação ao que vinha produzindo o Clube da Encruza. Nesse álbum, parcerias de Tulipa Ruiz e Juçara Marçal abrilhantam a mistura certeira de melodias vocais e de rap propriamente dito que só Criolo sabe fazer.

2014 também é marcado pelo primeiro trabalho de Rômulo Fróes com parceria mais ativa da Encruza, o ótimo Barulho Feio, um álbum onde o artista soma suas composições com sons gravados por ele enquanto andava pelas ruas da cidade.

Já em 2015, começa uma série de produções que revitalizam a obra de artistas já consagrados da música brasileira.

A mais importantes destas com certeza é A Mulher do Fim do Mundo, da gigantesca Elza Soares. Nesse álbum, como os próprios membros admitem, o nome dos artistas desse grupo ganha uma notoriedade ainda não alcançada dentro do meio musical, e não é pra menos!

Esse álbum foi quase unanimemente considerado o melhor do ano pela crítica. Ele serviu para renovar a estética da Elza ao mesmo que consegue manter a sua autenticidade e característica em discursos modernos e muito potentes. A Mulher do Fim do Mundo foi um ponto chave para a carreira da Elza, que a partir de então vem seguindo renovando a cada produção e sempre mantendo a atenção da mídia para sua obra atual, coisa rara em artistas de tanta longevidade.

Outro artista renovado pelo Clube da Encruza foi Vicente Barreto. O seu álbum Cambaco, também de 2015, é outra sensacional amostra da capacidade desse pessoal em trazer elementos contemporâneos para uma obra ao mesmo tempo em que mantêm as características marcantes de um artista.

Junto ao Passo Torto, Ná Ozzetti (Grupo Rumo) lançou o álbum chamado Thiago França (pois é…) também em 2015. Nele, a proposta que a banda havia apresentado em Passo Elétrico se funde com experimentações (tanto na sonoridade quanto na formatação das letras) com mais cara de Romulo Fróes. E o resultado é magnífico, com destaque para faixa “O Cinema É Melhor”.

Mas, na minha opinião, as investidas de Kiko e Rodrigo nas guitarras tiveram seu ápice no álbum Encarnado, de Juçara Marçal. As “camas” construídas pelas guitarras (muitas vezes acompanhadas dos metais de Thiago França) são precisamente suficientes para Juçara despejar todo o seu potencial vocal em um trabalho textual que também merece um destaque entre os grandes trabalhos do Clube da Encruza.

Em 2015, Juçara também participa do álbum experimental de Cadu Tenório chamado Anganga, dando a ele sua voz de forma diferente, utilizando também como ambientação para os arranjos.

Acompanhando a linha de Encarnado, em 2016 o Metá Metá lança M M 3, um álbum que serve para engrossar a identidade e a dimensão da banda como uma das protagonistas do cenário nacional.

Já em 2017, Kiko Dinucci finaliza um trabalho que durou quase uma década lançando Cortes Curtos, considerado o seu primeiro álbum solo, visto que Na Boca Dos Outros é mais um trabalho em parceria. Nesse maravilhoso trabalho, Kiko mistura as suas investidas de entortar o samba com as suas influências do punk e post-punk de uma forma extremamente original, com letras que poetizam o cotidiano e as bizarrices da cidade de São Paulo.

Finalizando esse capítulo, temos ainda Sambas do Absurdo, álbum criado em parceria por Rodrigo Campos, Juçara Marçal e Gui Amabis (nome que voltará a ser mencionado). Com uma ideia bem conceitual, o disco se usa um pouco de cada investida criada até aqui e vai, de forma decrescente, poetizando absurdos da nossa vida em formato de sambas-tortos, ao melhor estilo do Clube da Encruza.

Retomada à revisitação do samba e mistura das propostas anteriores

De 2018 para cá, vemos que os membros da Encruza vêm revisitando as propostas de seus primeiros trabalhos e aliando a elas as experiências e experimentações vividas depois disso.

Entre esses trabalhos, podemos falar de Motor, primeiro álbum solo de Marcelo Cabral, um disco com as características fundamentais da trajetória do grupo.

Em 2018, Rodrigo Campos lança 9 Sambas, com parcerias de Romulo, Juçara, Kiko e César Lacerda. Nele, Rodrigo remonta elementos de seu primeiro álbum, São Mateus Não É Um Lugar Tão Longe, com certa maturidade adicionada ao conceito.

Artista influenciado pelas obras da Encruza, Gui Amabis lançou também em 2018 o álbum Miopia, com parcerias de Juçara, Thiago França, Rodrigo Campos, Tulipa Ruiz e Rosa Amabis. Sendo o segundo álbum de Gui junto aos membros da Encruza, considero aqui ele como um artista recorrente e alinhado com as propostas do grupo.

Com os arranjos de Thiago França, temos em 2018 O Disco Das Horas, álbum conceitual de Romulo Fróes com letras de Nuno Ramos e com influências da Orquestra Tabajara.

Já em 2019, é lançado então uma das obras mais importantes da Encruza, o álbum Besta Fera, de Jards Macalé. Uma das maiores referências dos membros do grupo, Macalé não lançava um trabalho de canções originais desde O Q Eu Faço É Música, de 1999, e escolheu esse grupo de novos artistas para renovar a sua música, justamente por conversarem com o histórico de sua obra.

Também em 2019, Rômulo Fróes e Thiago França fizeram parte da produção e direção do álbum Folhuda, de Juliana Perdigão, que também contou com Lucas Santtana, Arnaldo Antunes, Ava Rocha, Tulipa Ruiz e mais.

Caminhos ainda mais novos

No final de 2019, Romulo Fróes lança o single “Elza Aqui”, um exemplo definitivo de sua procura em descontruir o formato de canção influenciado por música concreta e até funk mineiro (?).

Já em 2020, o artista Clima lança La Commedia É Finita, seu segundo álbum como cantor. Nele, conta com a participação dos membros da Encruza (tanto no álbum quanto na sua turnê) e também com as características do grupo, somando ainda cantos líricos ao projeto.

O mais recente projeto que envolve os membros do grupo é o álbum Rastilho de Kiko Dinucci, que saiu inclusive enquanto eu começava a escrever esse artigo. Em Rastilho, Kiko volta ao violão depois de todos os álbuns que fez empunhando sua guitarra. O violão é o protagonista absoluto do álbum, todas as músicas são realizadas em torno dele, com arranjos mínimos e, mesmo assim, violentos.

Foto: Red Bull Studios
Foto: Red Bull Studios

Nessa missão de concentrar no mesmo artigo tudo que realizaram os artistas do Clube da Encruza, posso até mesmo ter deixado algum projeto de fora, visto a quantia de arte que é feita por eles ao longo desses últimos 15 anos.

E para ajudar o leitor no conhecimento das obras que mencionei aqui, fiz também uma playlist com pelo menos uma música de cada projeto.

Depois disso tudo, não preciso nem afirmar o quanto indico conhecer cada um dos artistas do Clube da Encruza, a verdadeira veia marginal da música brasileira que continua cada vez mais viva e inventiva.

2 comentários

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