
Perfil escrito em 2014.
Por Caroline da Costa Figueiredo
Ilustrações: Ketelin Wochner e Alexandre Pappen
Lentamente, os pedaços de pão caem na tigela. Ao lado, o pote de margarina serve aos animais a água fresca. Era uma tarde quente de abril. O sol forte das 14 horas intensificava a sombra das árvores que preenchiam o quintal. Três delas, as maiores, abrigavam ao lado de seu tronco uma tigela.
– Eles gostam de pão! Vêm aqui todos os dias comer. Quando me enxergam já sabem que é hora do lanche.
Rapidamente, os bichanos se aproximam. São três, dois brancos e um em tom mesclado de cinza e amarelo. Um a um saboreiam o prato preparado especialmente para eles. Mas tem espaço para todos nesse banquete. A “boia” também é dividida com os passarinhos, que, cautelosos, se aproximam para bebericar e comer algumas migalhas enquanto batem as asas freneticamente.
– Fico sempre de olho, se não, os gatos comem os passarinhos.
Enquanto alimenta os novos amigos, Gumercindo Forte, de 81 anos, relembra de sua família canina que teve que deixar para trás.
– Eram vinte! Todos moravam comigo!
Com o olhar parado em um ponto fixo ao longe, ele esfrega lentamente as mãos repletas de farelo, as quais acabaram de esmigalhar o pão. Seu Gumercindo volta a me fitar com os olhos baixos.
– Eles eram tudo para mim. Tirei eles das ruas, dava comida, banho, nunca deixei faltar nada.
Seu Gumercindo não sabe precisar há quanto tempo está longe dos amiguinhos – como chama carinhosamente –, mas a preocupação continua a mesma. O risonho senhor, que já não possui mais nenhum fio de cabelo, carrega em cada expressão as lembranças de uma vida dura. Retirado de sua antiga casa, no bairro Pinheirinho, pela assistência social, passou a morar no Centro de Convivência do Idoso CL Aurino Mantovani, no bairro Saic em Chapecó (SC). Gumercindo faz parte dos 8,3% da população idosa do município, este que chega a 183.530 habitantes.
Sem jamais ter se casado, Gumercindo não possui filhos, nem mesmo família. Os pais faleceram quando ele ainda era novo e os dois únicos irmãos residem em Chapecó, mas nunca o visitaram. A ausência de carinho por parte dos familiares é suprimida pelo amor que recebe dos animais. Independente da espécie, seu Gumercindo os abraça e acolhe como se fossem uma parte de si mesmo. Cuida, mima e protege, tal qual um pai com sua prole.
– Não gosto que maltratem eles. Tinha até um lagarto que vinha ‘me visitar’. Um dia ouvi o Vicente falando que iam matar ele. O bichinho nunca mais apareceu aqui.
A nova casa de seu Gugu, como é chamado pelos amigos, atende um total de 16 idosos, 11 homens e quatro mulheres, que compartilham muito mais do que quartos e refeições, dividem também suas histórias de vida. A rotina na casa é variada. Tem dias em que as visitas aparecem, outros em que a solidão é a única companhia. Não pela ausência de pessoas, mas pela falta de um rosto familiar no ambiente pacato. O silêncio se torna ensurdecedor e o sono, muitas vezes, é a única escapatória.
Com a imagem de São Jorge na mão, o homem de estatura baixa – beirando aos 1m55cm – senta em sua cadeira improvisada em um pedaço de tronco de árvore. Depois de sofrer um Acidente Vascular Cerebral (AVC), por volta dos cinquenta anos, acredita ter sido salvo pelas mãos de Deus. Termina de alimentar os animais e se levanta devagar. Com os passos lentos, porém firmes, segue em direção à calçada externa do Centro, a qual dá de frente para o quintal. Rodeado pelas árvores e embalado pelo canto dos pássaros, relembra com os olhos embargados de quando (quase) sofreu um segundo AVC.
– Eu tava empurrando a minha bicicleta e de repente senti algo parecido com um soco em cima da minha cabeça. Perdi a noção de sentido e fiquei muito perdido. Naquele momento ‘Ele’ conversou comigo! Me orientou a colocar água fria na cabeça para evitar o AVC. Fiquei parado um tempo até conseguir caminhar de volta para casa. Quando cheguei fiz exatamente isso e, acredite se quiser, foi o que evitou outro acidente. Ele me salvou mais de uma vez! – conta, enquanto perambula os dedos inquietos em cima do joelho esquerdo apoiado na calçada.
O AVC deixou sequelas e marcas para sempre. Os dentes foram arrancados. Após o acidente, afrouxaram-se um a um e seu Gumercindo os retirou em casa. Não quis ir ao “médico”.
– Minha cura está em Deus, é Ele quem cuida de mim. – diz, enquanto comia as bolachas de milho que um colega de casa acabara de lhe trazer.
Mesmo com dificuldades para mastigar, o biscoito é saboreado vagarosamente. Após a pausa para o lanche, é hora da aula de pintura. O relógio marca 15h30. Seu Gumercindo caminha em direção a sala de TV onde as voluntárias esperam com tintas e panos. Senta-se em uma das cadeiras do lado esquerdo da grande mesa de madeira azul marinho, localizada no interior da sala, de frente para as enormes janelas de vidro que dão vista para o quintal repleto de árvores.
A sala de TV é um dos poucos espaços de lazer que os idosos têm na casa. Na sala, poltronas grandes e estofadas e uma televisão de 24 polegadas que fica à disposição durante todo o dia. Este se torna o ponto de encontro no momento da pintura. Aos poucos os idosos se achegam e sentam-se lado a lado para iniciar as atividades. Seu Gumercindo pega o pequeno pincel amarelo e inicia a pintura do gato que lhe fora desenhado por uma das voluntárias. A cor da tinta, própria para tecido, também foi escolhida por ela: vermelho escuro, quase um bordô. Entre os pequenos dedos da mão direita, seu Gugu segura o pincel que acabara de molhar na tinta ao seu lado. Com movimentos de vai e vem, ele inicia sua obra de arte. Em silêncio e concentrado, segue com a atividade que foi a ele confiada. Ao seu lado quatro colegas de casa também pintam, enquanto conversam paralelamente. Resmungos daqui, risos dali, a tarde se torna uma grande brincadeira entre o colorido das tintas e a habilidade artística de cada um. Sério, seu Gumercindo para por um instante, larga o pincel sobre a mesa e observa a representação do gato a sua frente:
– Mas não existe gato vermelho, né?
Observando atentamente, ele a encontra. Branca, essa será a cor do gato. Com dificuldade, abre o pote e despeja a tinta sobre a tampa. Vagarosamente, ele passa a cor branca por cima da vermelha até que o branco predomine. Em sua frente, seu Ismael, um dos colegas de casa, produz uma arte moderna com as cores verde e branco, a qual divide com Seu Gugu.
Dia 17 de abril, 14h00. Seu Gumercindo se prepara para ir ao supermercado – o armazém, como ele mesmo se refere. Guarda sua carteira preta envolta em um plástico dentro do bolso direito do calção, que devido a sua estatura chega a parecer uma calça, deixando apenas as canelas à mostra. O dia está ensolarado, mas, mesmo assim, seu Gumercindo veste duas blusas e um casaco. Devagar ele caminha até o portão. Gumercindo é um dos poucos idosos que tem autorização para sair sozinho, desde que em segurança e nos horários corretos. O armazém é um dos lugares que ele vai com frequência. Localizado a duas quadras de distância da casa, o Supermercado João23 é destino certo pelo menos duas vezes por semana.
Caminhando devagar, ele arrasta os chinelos no asfalto quente enquanto relembra os itens que pretende comprar. Torresmo, ração para gatos e Coca-Cola. No caminho, enquanto passa em frente à escola, olha para as crianças correndo na quadra de esportes e sorri como se a cena permitisse uma viagem no tempo. Ao chegar ao mercado, seu Gumercindo, já conhecido, cumprimenta a todos mesmo sem recordar os nomes. Enquanto caminha até a prateleira de torresmos, o dono do estabelecimento lhe traz o pacote de ração. A lista de comprar de seu Gugu também já é conhecida. Torresmos escolhidos e dispostos junto à ração. No caixa ele lembra do último item de sua lista: a Coca-Cola. A atendente levanta-se para buscá-la enquanto ele retira a carteira do bolso.
– Quatorze com sessenta e cinco!
De volta para casa, seu Gumercindo leva as compras em direção ao quintal. Lá encontra com seu Júlio sentado em uma cadeira na calçada. O colega e amigo levanta ao vê-lo se aproximar e lhe abraça com um tapinha nas costas. Júlio e Gumercindo passam horas conversando durante o dia, trocando conselhos e histórias. Certa noite, conta Júlio, Gumercindo foi a salvação.
– Era por volta de duas da madrugada, eu acordei com um vazio no estômago, era fome. Então lembrei que o Gugu sempre guarda algum doce no armário. Levantei pé por pé e fui até a cama dele. Chamei baixinho e para minha surpresa ele também estava acordado. Levantou e foi comigo buscar uma rapadura, guardada no meio de suas coisas. Ele é um bom amigo, sempre me socorre nos momentos de “aperto”.
Eram 16h00, a tarde estava ensolarada, e Seu Júlio sentava sob a sombra de uma árvore com longos galhos repletos de folhas. Pitava o último cigarro do dia. Os olhos negros pairavam imóveis no horizonte fitando lugar nenhum. Pareciam perdidos em meio aos pensamentos. As pernas compridas e pouco flexíveis se cruzavam uma sobre a outra em sintonia, enquanto o pé direito balançava o chinelo preto de número 44. Os cabelos brancos e finos combinando com a pele, repleta de manchas e enrugada pelo tempo. Em cada marca, uma história. São 81 anos traçados por diferentes caminhos, ruas, bairros, cidades, estados e países. Do início ao fim do mapa, do Paraná a Bahia, de um extremo ao outro do país e até fora dele. Júlio Guahnon é gaúcho de nascença, mas carioca de coração. Natural de Uruguaiana, município com pouco mais de 120 mil habitantes, localizado a 672 km de Chapecó, seu Júlio já morou por “todo o canto do Brasil”. Mas o amor fala mais alto pelo “carioquês” do Rio de Janeiro, cidade que morou por quase oito anos.
– O povo lá é muito hospitaleiro. Fiz muitas amizades e vivi grandes histórias naquele lugar. Cheguei a frequentar as antigas gafieiras e os sambas de roda de Copacabana. Que cidade maravilhosa!
Mas, apesar do amor pelo Rio de Janeiro, o Sul foi a escolha para encerrar a longa jornada percorrida. Ele, assim como 14,4% dos 26,1 milhões de idosos espalhados pelo Brasil, optou pela região Sul para viver. Apenas em Santa Catarina, o Estado escolhido por ele, em meio a 6.248.436 pessoas, os idosos chegam a um total de 10,5% da população.
O pito do cigarro é jogado de lado e a última fumaça de nicotina é expelida pelos pulmões formando uma pequena nuvem a sua frente. O cheiro forte predomina no ar enquanto as pernas trocam de lugar. O chinelo cai no chão. A dificuldade em abaixar-se para pegá-lo é percebida com o estalar dos ossos. Desiste de recolher o chinelo com as mãos e utiliza o próprio pé descalço para reerguê-lo entre os dedos. Com o pé novamente calçado, seu Júlio pede que eu o acompanhe.
Levanta e com passos lentos percorre a calçada externa do Centro, no qual reside há cerca de três meses. Enquanto caminha em direção à parte interna da casa faz questão de me apresentar cada cômodo e cada funcionário. Como um pai que apresenta um novo mundo à filha. No caminho uma das enfermeiras, a sua preferida, que atende por Laura, lhe entrega um pequeno copo de plástico com algum remédio – não se sabe ao certo qual. Mais um dentre tantos durante o dia. Ele engole de uma só vez. Júlio sofre com uma série de doenças devido à idade e, assim como a coleção de histórias, agora também carrega uma série de diagnósticos pouco satisfatórios.
– A idade acaba com a gente, não tem jeito. Mas dou graças a Deus de ainda ter consciência e discernimento das coisas – comenta, enquanto devolve o copo vazio para as mãos da enfermeira.
A próxima parada é a cozinha. O cheiro doce que vem do fogão leva a crer que, após o jantar, a sobremesa do dia será bolo. A cada novo espaço da ampla casa de paredes largas pintadas com um azul céu, Seu Júlio apresenta alguém como um membro de sua nova família. Viúvo três vezes, decidiu não se casar mais após o falecimento de sua última esposa, há seis anos. Antes da morte de sua esposa, eles viveram em Balneário Camboriú (SC). O mar é uma das paixões de Júlio.
– Só de pensar em acordar e ter aquele mar todo à minha disposição é como levar uma injeção de ânimo.
Passo a passo pelos corredores grandes, a visita continua e a sala da enfermaria é a próxima parada. Adentrando devagar ele me apresenta à enfermeira Paola, a qual o recebe com um abraço firme.
– Ela quem manda aqui. É a chefe! Cuida dos horários de todos os nossos remédios. Com ela não tem erro!
A enfermeira sorri e retribui a gentileza.
– Ele é um encanto de pessoa! Sempre vem aqui me “visitar”.
Dez minutos de caminhada pela casa e é hora do descanso.
O dia está nublado. O cenário é composto pelo estacionamento em nossa frente e as árvores que balançam no ritmo do vento. Seu Júlio me recebe risonho. Sentado em sua cadeira de plástico, cruza as pernas e se desculpa por não levantar para me cumprimentar. Me sento ao seu lado, em uma das cadeiras de madeira. Por um momento o ambiente é tomado pelo silêncio. Seu Júlio paira o olhar sob um ponto fixo, como se tentasse se recordar de algo importante. Em seguida me olha e com o sorriso nos lábios relembra de seus filhos. São três, duas mulheres e um homem. O contato com os filhos é restrito. Todos moram longe e pouco se visitam. Uma de suas filhas tem dupla nacionalidade. Hoje vive na Itália, com o marido e uma filha. A neta italiana, Seu Júlio viu apenas uma vez, quando a menina tinha por volta de oito anos.
– Naquela época eu morava em Balneário Camboriú. Elas vieram da Itália para Porto Alegre, na casa de uma das minhas irmãs. Minha filha me ligou pedindo que eu fosse vê-las, mas eu disse que se elas tinham vindo para me visitar, eu morava em Santa Catarina, não no Rio Grande do Sul. No mesmo dia elas pegaram um avião até Florianópolis e foram para Balneário me ver. Passaram uma semana na minha casa e o afeto que eu e minha neta criamos foi algo inexplicável. A nossa ligação é de outras vidas, tenho certeza disso! Mesmo não nos vendo, ela sabe do amor que tenho por ela!
Apesar da saudade que sente dos filhos e netos, a presença de Seu Júlio na vida deles sempre foi rara. Acostumado a viver de canto em canto do país, nunca criou raízes por muito tempo. Assim também foi com a primeira esposa, a única que se casou na igreja. Ela morava em Pelotas, município do Rio Grande do Sul, em que ele morou aos 22 anos. Foi com essa idade que se casou. Ela tinha 17 anos, cinco anos mais nova, o que não impediu que o amor nascesse e crescesse entre eles. De família conhecida na cidade, ela era bem de vida e ele um simples trabalhador assalariado. Desse sentimento surgiram frutos: a primeira filha. Apesar de todo o amor, o casamento durou pouco, cerca de cinco anos, quando Júlio decidiu seguir a vida.
– Eu não sei dizer ao certo porque nos deixamos. O nosso amor era verdadeiro: sabe aquele amor que você sabe que vai ser para sempre? Que mesmo que existam outras pessoas, você sempre lembrará daquela pessoa? Então, ela foi esse amor pra mim! Pena que eu sempre fui cabeça dura demais para admitir para mim mesmo todos esses sentimentos. O orgulho sempre falou mais alto e foi por causa disso que eu fui embora. Sempre achei que me bastava sozinho e olha só, me enganei feio!
Enquanto relembra da ex-esposa, seus olhos ficam marejados. As lágrimas são contidas com um suspiro forte em meio as recordações do amor de uma vida. Ele passa as mãos lentamente pelo rosto, esfrega o nariz em um lenço branco que retira do bolso de sua calça jeans e enxuga o que parecem ser pequenas gotículas de lágrimas. Os segundos que se seguem são de silêncio absoluto. O canto dos pássaros pode ser ouvido ao longe. Até mesmo o barulho do vento sobre as folhas das árvores preenche o ambiente. Até que o silêncio é quebrado pela presença da enfermeira Laura, que surge novamente com a bandeja de remédios na mão.
– Está na hora de mais um remédio, Seu Júlio.
Dessa vez sua visita não é passageira. Enquanto Júlio toma o remédio, Laura puxa uma cadeira e senta ao lado dele. Largando a bandeja no balcão ao lado, ela questiona Seu Júlio sobre seu estado de saúde. Prontamente ele responde a cada pergunta e demonstra satisfação com a preocupação e o afeto de Laura. Ao contrário dos demais idosos, Júlio foi para a casa por livre e espontânea vontade. Sentiu que no Centro teria melhores condições de realizar a bateria de exames de que necessitava, além de conseguir cumprir com os tratamentos em busca de sua melhora. Cansado pela idade e pelos anos em que passou percorrendo o país, ele encontrou na casa um lugar para repousar suas forças e recarregar as energias, para então seguir sua caminhada. Essa força é regada pela fé. Todos os sábados Júlio frequenta o Centro Espírita Bezerra de Menezes, onde, além de renovar o espírito, se encontra com os velhos amigos.
– Eu gosto muito de ir lá. Chego, sento no meu cantinho e escuto eles falarem. Depois vou até a sala de passe e saiu de lá outra pessoa. É muito bom, me sinto feliz. Pena que esse sábado não poderei ir, o rapaz que viria me buscar não vem, sozinho eu acho que não consigo chegar, é muito longe daqui!
Ouvindo atentamente, Laura se coloca à disposição para levá-lo ao centro espírita.
– Sábado eu estou de plantão, Seu Júlio. Trabalho 12 horas, mas saio bem no horário que o senhor precisaria ir. Posso te levar, se quiser!
– Ah Laura, sério? Poxa vida, eu ficaria muito feliz, de verdade! Se você puder me levar eu aceito sim. Depois para voltar tem quem me traga. Um amigo meu que vai lá me convidou para almoçar na casa dele nesse domingo. Se eu conseguir ir vou poder confirmar o almoço e ele vem me buscar no domingo, serão dois passeios de uma só vez!
Satisfeito com a notícia dada pela enfermeira, Seu Júlio abre um sorriso largo e aperta firme a mão de Laura. A enfermeira olha no relógio. Está na hora de levar os medicamentos a outro idoso. Ela sorri e levanta procurando a bandeja. Depois de um longo abraço em Júlio segue com as rotinas do dia.
E aquele foi o último dia de Seu Júlio no Centro. Ele foi morar em um lar de família acolhedora, uma das possibilidades que os idosos têm em deixar a casa e viver no conforto de uma família. A partir de agora, Seu Júlio não vive mais com seus amigos do CCI. Arrumou suas coisas, despediu-se e rumou seus passos a um novo capítulo de sua vida.
É hora do remédio de Seu Vicente. O relógio marca 15h40min e lá está ele. Sentado como de costume na cadeira de madeira antiga com o encosto revestido de “tranças de plástico”. Bate os dedos em cima da pequena e antiga mesa azul de quatro lugares. A cadeira da ponta esquerda é a sua preferida. Todos os dias senta no mesmo lugar com seu boné azul posicionado com a aba para a frente e sua inseparável sacola de jogos. Chacoalha a perna direita enquanto espera, olha para o grande relógio de prata que carrega no pulso esquerdo, e em seguida para a porta de acesso a área externa.
– Vem de uma vez se quer jogar! – esbraveja seu Vicente.
Arrastando a alpargata no chão, ele vem se explicando:
– Eu tava fazendo massagem, mas já cheguei! – diz seu Valdir, o companheiro de partida. Puxa a cadeira da lateral sentando devagar. Repousa as mãos em cima da mesa e olha diretamente para o amigo.
– E “quedê-le” as peças?
Em poucos segundos, lá estão elas viradas para baixo, freneticamente misturadas entre os dedos enrugados de seu Vicente. A mesa serve de palco para as partidas.
– Quer jogar também ou acha que vai ficar aí só olhando?
Com os olhos azuis por de trás dos óculos quadrados apoiados sobre a ponta do nariz, ele coloca suas peças lado a lado. Aceito a provocação e me junto à dupla. Seu Valdir limpa os óculos na camisa quando é surpreendido pelo amigo.
– Pega as tuas peças de uma vez, ainda não acordou? Já são quase quatro horas, vamos terminar essa partida que horas assim? – e olha para o relógio.
Separa as suas sete peças do dominó azul e branco. Adiantando-se, coloca a peça dupla de meia dúzia no centro da mesa.
– Vamos lá, então!
O jogo termina na mesma rapidez em que começa. E para não perder o costume, a vitória é dele.
– Já?
– Mas com certeza. Aqui tem que ser assim, não pode dormir no ponto.
O jogo recomeça. Dessa vez quem dá a largada é Seu Valdir, que coça a cabeça e ajeita os óculos enquanto analisa as peças. Rapidamente, a peça escolhida está no centro da mesa. A peça dupla da vez é a de quatro. Logo, sou surpreendida pelo olhar de Seu Valdir. Analiso e efetuo a jogada. Chega a vez de seu Vicente, que é interrompido pela cozinheira ao longe gritando:
– Hora do lanche pessoal!
– O que tem aí? – questiona Vicente, enquanto se inclina para frente tentando enxergar o que tem dentro do copo de plástico amarelo.
– Salada de frutas! Tá fresquinha!
– Não quero! Fruta faz mal, prefiro carne. – e volta os olhos para seu jogo.
O olhar fica compenetrado. Ele enruga a testa devagar e arqueia a sobrancelha direita enquanto abaixa os óculos finos sobre o nariz. Suspira. Coça a cabeça. Bate os dedos sobre a mesa e finalmente efetua a jogada.
– Vai!
E todos os dias a rotina se repete. Após o almoço servido às 11h00, Seu Vicente “sem sobrenome” se retira para a área externa que dá de frente para o estacionamento preenchido pelas árvores. O espaço da mesa é dividido com três máquinas de lavar roupa e uma centrífuga que trabalham sem intervalo. Em cima de uma delas, um rádio pequeno toca as músicas da programação vespertina da Vang FM. O vai e vem de pessoas é constante. Entra gente, sai gente. O movimento não finda. E todos os dias ele está lá, sentado no mesmo lugar aguardando alguém para jogar dominó. A atividade é, além de passatempo, uma companhia certa ao longo dos oito anos em que Seu Vicente vive no Centro, que é mais um dentre as pouco mais de 5.500 instituições de acolhimento e cuidados a idosos distribuídas pelo Brasil. Destas, apenas 238 são públicas, e a maioria é de origem filantrópica.

Trazido para a casa por assistentes sociais, nunca quis ir embora, apesar de ser livre para deixar a casa quando quiser, optou por permanecer ali até que “Deus o chame”. Aos 78 anos, idade que demorou a revelar, é pai de seis filhos, cinco mulheres e um homem, todos já criados e casados, gosta da vida que leva. Netos são dois, se não está enganado. Divorciado há anos – tantos que nem se recorda com exatidão –, não quis mais se casar. Preferiu levar a vida assim: “sozinho”. Os filhos vêm visitar em datas comemorativas, como o Natal e o Ano-novo. Em muitas ocasiões já quiseram o levar para viajar. Em todas as tentativas a resposta foi negativa.
– Cada um segue a sua vida! – diz, enquanto ergue o boné e coça a cabeça com a ponta dos dedos.
O homem de estatura média – beirando os 1m75cm –, com os cabelos ralos e brancos, é natural de Getúlio Vargas, a cidade do ex-presidente Vargas, o qual faz questão de citar. Deixou o município ainda jovem e após algumas andanças pelo “Rio Grande amado” veio parar em Chapecó, há 30 anos. Na cidade, sempre morou no bairro Esplanada, onde diz conhecer “todos”. Trabalhou como “peão” de obra e ajudou a levantar muita construção.
– Eu acho que foram mais de cinquenta casas que eu já fiz!
Quando não está jogando, Seu Vicente gosta de se sentar em uma das tantas poltronas disponíveis pela casa. Opta pela pequena, de apenas um lugar, que dá de frente para o portão de entrada principal. Com a perna direita dobrada sobre a esquerda, ele olha longe. As marcas de expressão em sua pele são testemunhas de uma vida de muito trabalho. Desde pequeno ajudava na colônia, plantando, colhendo, roçando… acordando cedo e dormindo tarde. Essa era a rotina de Vicente no interior de Getúlio Vargas, onde viveu com a família até os 30 e tantos anos. Os pais, já falecidos, são apenas lembranças guardadas em seu coração. O motivo da morte de ambos se perdeu no tempo.
– Eu nem me lembro mais do que foi que eles morreram. Sei que meu pai partiu primeiro. Faz muito tempo!
Aos finais de semana ele deixa as dependências do lar e vai até o bar que fica na esquina de trás, onde se encontra com os amigos. A conversa descontraída se torna companhia junto com a tradicional “cervejinha” de final de semana. É sagrado. Todos os sábados e domingos, a partir das 16h00, o ritual se repete e lá vai ele rumo a “bodega”. Veste a roupa mais nova, que guarda no armário dividido com os demais companheiros. Coloca o boné de aba azul virado para a frente, calça as alpargatas e caminha rumo ao bar. Além da bodega, o único lugar que ele se interessa em ir é aos bailes que o amigo gaiteiro toca.
– Eu tenho um amigo que toca baile e ele vive me convidando pra ir com ele. Semana passada ele foi pro Rio Grande e queria que eu fosse junto, mas não fui. Acho que esse domingo vou me obrigar a ir, se não ele não vai parar de me incomodar!
Fora isso, a rotina de Seu Vicente segue entre a conversa fiada com os colegas de casa e os jogos de dominó. Das atividades oferecidas durante a semana, como as aulas de pintura e as sessões de fisioterapia, ele não gosta de nenhuma. Em uma das quintas-feiras de visita das estudantes de Fisioterapia, Seu Vicente foi arrastado para a atividade. Após esbravejar e resmungar bastante se juntou ao grupo, mesmo a contragosto. Se sentou em uma cadeira bem no canto da sala e ficou observando os demais colegas sentados em círculo. A atividade era para a memória. Todos deveriam contar fatos marcantes de sua infância. Ele, relutante, disse não lembrar de sua infância. Depois de muito questionamento e insistência das meninas, ele se rendeu.
– Tá bom, tá bom! Eu só lembro que gostava de andar a cavalo quando era criança e olha que isso nem faz muito tempo!
Aos poucos, todos entraram na brincadeira. Era a hora do desfile, todos deveriam caminhar até o centro do círculo. Mas Vicente, não.
– Não, não! Não tenho mais idade para ficar desfilando por aí. E de mais a mais vocês acham que é assim para eu expor minha beleza por aí, se querem me admirar tirem uma foto!
Os risos tomam conta do ambiente e tudo acaba em festa. Em dias comuns, sem visitas ou a intervenção de atividades, ele se senta nas sombras das árvores e fica sozinho, parado. O olhar fixo e longe. Diz gostar de sua própria companhia. Durante a noite assiste ao Jornal Nacional; gosta de se manter informado pela voz de Willian Bonner.
– Eu só assisto o Jornal Nacional, depois que acaba vou reto dormir! É dez horas e já estou sonhando! E assim se encerram os dias de Seu Vicente, na sua cama de ferro em um quarto grande dividido com mais oito dos 11 homens que ali moram.

E todo dia é sempre igual. Levantar cedo, tomar café, jogar dominó, almoçar, descansar, jogar mais um pouco de dominó, fazer o lanche, conversa fiado, jantar, tomar banho, ver o jornal e dormir. A rotina de Seu Vicente, assim como a dos demais idosos, só é alterada com as visitas. Algumas com data e hora marcadas, outras surgem no meio da semana sem avisos prévios. O vai e vem de pessoas é constante, mas a permanência acaba sendo a de sua própria companhia.
– Você vai voltar, né!?
– Vou sim Seu Vicente, pode deixar que eu voltarei…
– Que não seja daqui há um ano, né!? Quem sabe eu nem esteja mais aqui…
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