Os outros caminhos da Música Caipira
Os outros caminhos da Música Caipira

Os outros caminhos da Música Caipira

A música caipira acompanha meus ambientes de convivência desde a infância e, por isso, acabei me afeiçoando a ela desde cedo. Com o passar dos anos e a adição de tantas outras informações musicais que descobri, ao invés de deixar esse gênero de lado, percebi também que ele segue outras linhas criativas que não se resolvem na concepção atual que temos desse estilo. Sendo assim, resolvi descrever minha análise sobre os outros caminhos que a música caipira tomou em sua valorização e evolução, desde lá do começo do século XX até agora. 

No que popularmente entende-se por evolução da música “sertaneja”, temos as suas matrizes estabelecidas com a gravação da primeira música do gênero, “Jorginho do Sertão”, de Cornélio Pires (interpretada por Caçula e Mariano) em 1929, passando dele pelos dos pagodões e modões, chegando ao sucesso absoluto com a adesão de uma abordagem voltada para ao romântico e de uma estética muito colonizada que visava copiar elementos do country e do próprio pop americano.

Depois disso, foi aderindo àquilo que fazia sucesso em geral. Uniu-se ao pagode nos anos 90 e, dos anos 2000 em diante, ao funk, ao arrocha e outras vertentes que foram surgindo paralelamente a eles. Dessa forma, o sertanejo continua sempre em destaque no cenário nacional, com esse sertanejo eternamente universitário (talvez ele curse uma UTFPR).

Mas também em paralelo a essa evolução mais concebida na nossa cabeça, a música caipira continuou sendo explorada por outros caminhos que, apesar de também alcançarem a popularidade nacional, tiveram essa estrada descontinuada – com exceções, claro.

Voltemos para “Jorginho do Sertão”, de Cornélio Pires, ou melhor, para antes disso. Afinal, esse gênero já existia pelo menos desde a expansão da ocupação portuguesa para dentro do território indígena brasileiro, através daqueles que ficaram conhecidos como Bandeirantes. Então, da cruza dos costumes europeus e da sonoridade da guitarra portuguesa com os novos hábitos que esse povo adquiriu por aqui, modificou-se o fado e também essa guitarra, que veio a criar a sua variação como viola caipira (ou viola brasileira) e, a partir disso, vem a criação de uma cultura de comportamentos e de produção artística factualmente brasileira.

Já nos anos 1920, começaram-se as primeiras expressões da valorização dessa música caipira como um elemento de importância cultural para o Brasil. Mário de Andrade, que já trabalhava e estudava a música brasileira ao lado de ninguém menos que Heitor Villa Lobos, foi um impulsionador da música caipira, desenvolvendo estudos, análises, reproduções (dela e de tantas outras expressões culturais da música brasileira, principalmente as desenvolvidas no norte e no nordeste) e até mesmo chegando a compor uma canção, a belíssima “Viola Quebrada”, feita em parceria com Ari Kerner.

Com a chegada da Era Vargas, houve um impulsionamento da música caipira com o objetivo de ocupação do oeste do país, copiando o modelo adotado nos Estados Unidos. (Fonte: CartaCapital).

Segundo o músico e estudioso Ivan Vilela (voltaremos a ele depois), em entrevista para a Carta Capital:

“A ideia (dessa ocupação) era estabelecer-se com o gado. As letras das músicas caipiras então deixam de ter temáticas agrícolas para adotar temáticas pastoris. E o termo também muda para sertanejo.” Essa mudança, segundo ele, estaria ligada a uma visão mais comercial do gênero na época, mas ainda de forma incipiente no mercado fonográfico.

Essa investida federal ao oeste trouxe uma leva de artistas que hoje se tornaram ícones da música caipira, nomes como o de Tonico e Tinoco, Inezita Barroso e a dupla Tião Carreiro e Pardinho consagraram-se tanto no resgate de canções que já eram populares nos sertões brasileiros, como: “Tristeza do Jeca”, “Luar do Sertão” e a própria “Viola Quebrada”, de Mario de Andrade, mas também sendo compositores de outras canções que também se tornaram marcos do gênero, como “Chico Mineiro”, “Pagode em Brasília”, “Chora Viola” e tantas outras.

Tonico e Tonico – early days.

Chegada a década de 60, a música caipira já era um estabelecido sucesso em grande parte do território nacional, mas tinha uma adesão nula dentro da elite da música brasileira, que por aqueles anos ainda desenvolvia e exportava a bossa nova.

Mas o que pouco se nota é que esse mesmo estudo jazzístico e até orquestral que a nova bossa fez com o samba, também poderia ter sido desenvolvido dentro da música caipira – e foi!

E é com a chegada dos grandes Festivais da Música Brasileira que notamos os primeiros exemplos dessas incursões. Tanto lógico (e incrível) quanto o caminho seguido por Tom Jobim pelas ideias semeadas de Heitor Villa Lobos, o caminho da MPB também nasce seguindo as proposições orquestrais para a música brasileiras de Villa Lobos através de outras vertentes desse continente geográfico e cultural, como o baião, o xote e, é claro, a música caipira.

Para entender o que eu digo basta ver tanto a apresentação de “Disparada” com a interpretação de Jair Rodrigues para a composição de Gerando Vandré e Theo de Barros, em 1966, como também a de “Ponteio” por Edu Lobo acompanhado de Marilia Medalha e do Quarteto Novo, composição dele mesmo em parceria com Capinam, na edição de 1967.

1967 foi o mesmo ano do marco zero da Tropicália, naquele mesmo festival. Mas já esse movimento surge mais voltado para uma proposta de mistura em outros estilos brasileiros, principalmente os nordestinos, com uma grande influência vinda da música britânica e da califórnia americana. Mesmo assim, em seu álbum manifesto, de 1968, encontramos canções que mostram elementos da música caipira, como a viola presente em “Geleia Geral”.

67 também é o ano do álbum de estreia de Milton Nascimento, que já indicando que viria a se tornar um dos maiores músicos brasileiros, entre canções icônicas como “Travessia” e “Canção do Sal”, gravou também “Morro Velho”, que já mostrava a sua preocupação com a valorização da música rural do Brasil.

Com a chegada dos anos 70, mais artistas com a expertise de seguir o que estamos chamando de outros caminhos da música caipira começam a surgir. Ainda em Minas, Sá, Rodrix e Guarabyra inauguram o “rock rural”, com canções sobre as vivências das transições entre a vida urbana e rural, com um ‘pé na estrada, outro no campo’. Sua ascensão comercial é impulsionada pela gravação de “Casa no Campo” por Elis Regina (o que se tornou ato bem comum em toda carreira da cantora).

Paralelamente a isso (que seria, me perdoem: por volta de 1972 e 1973) o mercado começa a dar atenção para a música rural nordestina, que ao mesmo tempo é tão parecida e tão dissemelhante com a de Minas Gerais e São Paulo. O destaque dessa vertente é Elomar ao lado de Xangai e algumas intervenções também de Geraldo Azevedo, que levaram para nível nacional as cantigas e cantorias populares de Pernambuco e da Paraíba (principalmente).

É mais do que necessário voltar para Milton, já que em 1976, agora já consagrado músico do mundo, volta a dar sua atenção para música caipira, gravando no álbum Geraes, as canções “Fazenda”, a obra recolhida do folclore mineiro “Calix Bento” e ainda “Cio da Terra”. Essa última, composta em parceria com Chico Buarque, foi a responsável por uma importante ligação entre músicos populares (pertencentes do pseudo-gênero da MPB) com músicos classificados como “de raiz”. Afirmo isso pelo fato de Pena Branca & Xavantinho, artistas mais voltados aos caminhos tradicionais da música caipira, terem escolhido essa canção para ser parte de seu repertório por toda carreira. Devido a isso, a dupla acabou interagindo e gravando com outros cantores dessas vertentes da música caipira que, juntos, no fim da década de 1970, começaram a ganhar certa projeção. Entre eles, os já citados Elomar e Xangai, mas também, Renato Teixeira.

Milton Nascimento, Pena Branca e Xavantinho. Foto: Reprodução/YouTube.

Teixeira que, em 1978, lançou seu álbum de estreia Romaria, com sucessos eternizados na cultura nacional, como a faixa-título “Romaria” e até mesmo “Sentimental Eu Fico”.

E agora quem se torna necessária voltar à pauta é Elis Regina. 1978 também o ano do seu álbum Elis (entre os outros tantos com esse mesmo nome). Nele, as duas canções citadas de Renato Teixeira foram gravadas, dando para elas uma gigante atenção por todo o país. Além dessas, a já citada “Morro Velho”, do primeiro álbum de Milton, também ganha uma maravilhosa repaginada.

Já os anos 80 trouxeram a pesada concepção romântica, com toques de country e pop ocidental. Chitãozinho & Xororó deram a frente para uma enxurrada de artistas que se tornaram gigantes da música no Brasil, tornando o “sertanejo” definitivamente um gênero ligado com a música popular, publicitária e comercial desse país, o que ocorre até hoje no que se finalizou em “sertanejo universitário”.

É lógico também que muito da vertente romântica que moldou a música popular no Brasil não pode ser menosprezada. Para mim e, acredito que também para uma significativa parte dos interiores do Brasil, artistas como os já citados Ch&X, mas também, Leandro & Leonardo, João Paulo & Daniel, Zezé di Camargo & Luciano, e até mesmo Bruno & Marrone, tiveram um impacto de personalidades públicas tão grande quanto a população das capitais dizem ter por Roberto Carlos.

Mas não os atentemos para esse assunto, afinal, é justamente sobre a linha paralela e dissemelhante desta que estamos falando.

Os anos 80 também nos presentearam com Almir Sater, que voltou a afirmar a importância definitiva que a música caipira tem sobre a nossa cultura. Os seus primeiros álbuns, Estradeiro e Doma, mostram um respeito muito grande por essas raízes, ao mesmo em tempo que se inventa sob e além dela com uma criatividade e virtuose muito originais.

Através de Almir, uma incursão interessantíssima aconteceu entre os experimentos populares da banda Os Mulheres Negras com as suas violas. Para o álbum Música e Ciência, Os mulheres Maurício Pereira e André Abujamra compuseram a canção “Milho” e pretendiam ter um músico de origens caipiras na sua gravação. Dizem eles que o primeiro contato foi com a icônica dupla Tonico e Tinoco, mas estes recusaram usando como desculpa o nome da banda ser, digamos, sugestivo a comportamentos de “mau hábito” na concepção dos artistas. O segundo nome escolhido, para minha nossa felicidade, foi justamente Almir Sater – e o resultado ficou incrível:

Mas os anos 90 demoraram a desempoeirar esses caminhos tão pouco continuados depois de Almir. Uma missão de resgate surgiu com o músico e estudioso Ivan Vilela (voltamos a ele). Seu álbum de 1998, Paisagens, se tornou uma referência até mesmo erudita de valorização à música caipira, que renderam para Ivan uma recente apresentação no Sesc Instrumental e, ao longo de sua carreira, outros álbuns magníficos com participações de músicos de renome nacional e internacional.

Nos 20 anos mais recentes, as manifestações desses caminhos mais interessantes da música caipira podem ser notadas na obra de Paulo Freire (sim, mesmo nome), onde ele aborda de forma extremamente artística (e não seria injusto incluir: teatral!) os causos e contos cantarolados por violeiros dos sertões de nosso país. Os mitos, as paisagens, as histórias, tudo cabe na música do grande Paulinho.

De uma forma bem peculiar, e por isso mesmo, original, surgem também nesses últimos anos uma visão deturpada da música caipira através de O Lendário Chucrobillyman e, mesmo de forma sonoramente mais limpa, mas com o linguajar tão sujo quanto às distorções de Chucrobilly, Waldi & Redson também se tornam experimentadores destas vertentes que até aqui apresentamos (mesmo que haja controvérsias. Tudo bem, elas sempre existem).

Concluímos então que, através de uma maior valorização das culturas rurais do Brasil, a música caipira continuou seguindo caminhos mais dignos do que aqueles que a levaram à produção comercializada de música de massa.  E para entender melhor os caminhos que seguimos até aqui, fizemos uma playlist que inclui os nomes citados nesse artigo e também alguns outros que se assemelham e contribuem para tirar a poeira dessa estrada de chão. Aproveitem!

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