Mãe da constelação
Mãe da constelação

Mãe da constelação

Por Ana Paula Dornelles

Vitória

Para muitos, Órion é identificada como uma das oitenta e oito constelações modernas, localizada no equador celeste e que é associada à figura de um caçador, personagem da mitologia grega. Mas para Vitória é muito mais do que isso. Órion significa paixão, amor e, acima de tudo, luz. Pois foi ao dar à luz que Vitória pôde segurar toda uma constelação em seus braços.   

– Por que decidiu chamar seu filho de Órion?  

– Porque sempre foi minha constelação favorita.   

O início da história de Vitória e seu filho tem local, hora e data. Foi no feriado da Independência do Brasil, que a suspeita de anemia deu lugar à confirmação de gravidez. Vitória e seu companheiro, Gustavo, realizavam um mochilão em Florianópolis quando um teste de farmácia, enfim, foi feito. O resultado não poderia ter sido outro. Uma vida formava-se dentro dela. Naquele momento, milhares de sensações ocuparam a mente e o coração dos futuros pais. Com mochilas na costas, carona improvisada e muitos pensamentos confusos, Vitória e Gustavo retornaram a Chapecó para lidar de frente com aquela nova etapa.   

Alguns meses depois da descoberta, Vitória viu o corpo mudar, as costas começaram a doer e o cabelo que antes ia até o ombro, ficou ainda mais curto. Tudo para facilitar seu dia a dia de mãe de primeira viagem. O curso de Artes Visuais deu lugar aos estudos dedicados à gestação. De universitária, Vitória, com 23 anos, optou por se tornar mãe.   

Mas não foi apenas o corpo da jovem que mudou. O modo de ver o mundo tornou-se diferente. Ela que apreciava as cores de forma unicamente primária, passou a enxergar seus diferentes tons. Hoje, com Órion e seus poucos meses, é impossível não ver a garota abraçada com tanto amor ao filho. Fica difícil de acreditar que em um rápido momento, Vitória pensou em não deixar a barriga crescer, muito menos amamentar ou escolher um nome. E ao lembrar disso, involuntariamente ela beija a cabeça da criança e sorri como forma de agradecer por Órion estar na vida dela.   

Com os pés descalços sobre a grama e a criança nua por conta do calor de um sábado típico de setembro, Vitória sente dificuldades em responder a qualquer pergunta sem pensar em várias coisas ao mesmo tempo. Enquanto fala sobre sua gestação, logo lembra que o filho precisa amamentar. Enquanto a criança mama no seio da mãe, os olhos de Vitória olham a bagunça da casa e a cabeça lembra que precisa responder a amiga nas redes sociais. As frases mal terminadas comprovam que o corpo precisa de descanso. 

De madeira, amarela e janelas brancas com grades pelo lado de fora. A casa onde Vitória, Gustavo e Órion vivem, por mais simples que seja, exibe um jardim que exala tranquilidade. Com uma gigante árvore logo na entrada, o gramado se enche de sombra e vento, mesmo em dias de muito calor. Com uma coberta estendida no chão e uma almofada colorida sobre a cabeça, Órion gosta é de ficar olhando para o céu, como se de alguma forma ele fizesse parte daquele universo gigantesco e azul.

Dentro da casa, brinquedos por toda a sala. Um sino dos ventos pendurado no teto. “Pode balançar, o Órion gosta do barulho”.  Lá, o som da TV e internet se fazem pouco presentes. O que normalmente se escuta, são pássaros cantando e instrumentos de música, tocados no quarto dos fundos por Gustavo. Mesmo sendo na cidade, a calmaria que ronda por ali é de outro mundo. Andando mais alguns passos, uma parede divide a sala da cozinha, onde a pia se esconde em meio a tantas louças sujas de dias atrás. Para comer, tudo natural, sem carne e, de preferência, sem agrotóxicos. 

Vitória resolve preparar um lanche da tarde.  Com um pão feito em casa, alguns pedaços de alho e rabanete, azeite de oliva e orégano, tudo é feito com total simplicidade. Vitória pica os ingredientes enquanto joga conversa fora. Sobre o pão fatiado, ela corta cada dente de alho em pedacinhos minúsculos. O orégano e o azeite de oliva são jogados por cima de cada fatia. E as rodelas de rabanete são organizadas ao redor. Tudo é colocado em uma forma de alumínio, dentro do forno a gás. Enquanto espera o pão torrar e ganhar sabor, a garota prepara uma água de cheiro, com pedaços de morango, laranja, gengibre e folhas de hortelã. Para sobremesa, um picolé de manga sem açúcar. 

Vitória é uma garota alta e magra. Seus cabelos são bastante curtos. Ela não usa maquiagem, nem esmalte nas unhas. Em suas costas, uma tatuagem com as fases da lua. No pescoço, um colar com uma estrela. Naquele dia, ela usava uma bermuda jeans e regata preta. No tornozelo, um acessório pendurado. Algumas coisas não eram tão comuns em outros tempos. A vaidade continuou presente, mas de outro modo. Os gostos mudaram, assim como as roupas do guarda-roupa. Sua casa não é nada parecida com as poucas residências próximas. As paredes são grafitadas com desenhos e escritas feitas por amigos. O jardim é enfeitado por filtros dos sonhos, mandalas e sinos dos ventos. 

O jeito que a garota fala é leve e sensível, sua voz sai baixa, ao mesmo tempo que é possível escutar tudo que diz. Seu pensamento divaga em muitos momentos, mas ela tem sempre segurança nas palavras que usa. A criação de Órion também se difere de muitas outras crianças. Para a mãe, o garoto tem de fazer tudo no seu devido tempo, quando se sentir preparado. Na verdade, toda a vida de Vitória gira em torno do tempo natural das coisas. É como um dilema que ela adotou e que segue a risca. 

Foi com essa leveza de ver o mundo, que desde o início de sua gestação Vitória tinha certeza de que o melhor para ela, seu corpo e seu filho, era realizar um parto humanizado, mesmo que isso custasse dinheiro. “A gente fez uma vaquinha, mas não conseguimos arrecadar o suficiente. Aí a moça fez parcelado e estamos pagando”. Ela, que adora ler e estudar sobre diversos assuntos, descobriu que o parto no hospital não era a melhor saída. Essa opção lhe dava medo. “Existem muitos casos de negligência médica em gestantes. É um crime que eu nunca desejaria sofrer”. Então, em companhia de Gustavo, de sua melhor amiga e de um amigo fotógrafo, Vitória foi até o Céu Caminhos do Amor, em Coronel Freitas, para  um trabalho de parto que durou cerca de 20 horas. E foi no dia 7 de maio que Órion veio ao mundo. “Era 4 e pouco da manhã”.

Enquanto me contava sobre sua história como mãe. Vitória, com o filho no colo, sentiu a necessidade de caminhar um pouco pelo jardim. Ao chegarmos na horta, produzida nos fundos da casa, a jovem apontou para uma pequena árvore que ainda formava as primeiras folhas. “A gente plantou a placenta aqui! Debaixo desse pé de tangerina!”

– O Gus saiu para comprar um pé de alguma fruta para plantar e trouxe a tangerina que é uma das que cresce mais rápido. 

Além da árvore, o desenho da placenta fica estampado na parede da sala da casa. Em pinturas feitas por Vitória. No jardim, além da árvore de tangerina, mudas de outras verduras crescem na terra, junto aos pés descalços da jovem. Ao lado da horta, uma grande quantia de mato alto, que a fez imaginar como o terreno ficaria ainda maior caso aquilo fosse tirado. Depois de uma volta completa ao redor da casa, Vitória decide deitar novamente Órion sobre a coberta estendida na grama. Um ninho de insetos desabrocha do gramado no mesmo instante. Os olho da mãe se desviam do filho para olhar a natureza…

A gente plantou a placenta aqui.

Debaixo desse pé de tangerina!

Vitória e Gustavo estão juntos há mais de dois anos. Quando se conheceram tornaram-se amigos e, com o tempo, o sentimento fluiu para algo mais forte. Hoje, não se definem como namorados ou marido e esposa, mas sim, como ‘companheiros’. E nessa trajetória cheia de vida, eles se encontraram no melhor e pior de cada um. 

No convívio do lar, Gustavo e Vitória cuidam juntos da renda da família. Vitória dedica-se, além dos cuidados com o filho, com alimentos e medicinas naturais. Gustavo trabalha com música e teatro. Mas o casal também conta com a ajuda de amigos e familiares. São principalmente os pais de Gustavo que ajudam os dois a se manterem, levando comida todos os meses e móveis quando possível. 

E como todo jovem, o casal não abandonou os amigos e as diversões dos finais de semana. Continuam saindo, mas agora, com Órion pendurado ao peito da mãe, como um pequeno canguru. O neném tornou-se o xodó dos mais íntimos, tanto é que já ganhou vários tios e tias, que mesmo não tendo o mesmo sangue, podem ser considerados da mesma família.

Órion é como um presente que veio de surpresa, mas que após sua chegada, iluminou a vida de quem estava por perto. Vitória tornou-se uma mulher, que mesmo jovem, já encontrou o maior amor que poderia ter. Em uma casa, onde a calmaria está sempre presente, mãe e filho aprendem juntos sobre a beleza de estarem um ao lado do outro. 

*

Ao me despedir, pergunto a Vitória o que de mais lindo ela vê da janela de sua casa. A garota olha para cima, como se enxergasse mais do que nuvens. E o céu parece sorrir para ela. Constato que a resposta não precisa ser dita, os olhos de Vitória respondem olhando para a constelação nos seus braços. 

OLHANDO PARA O CÉU, VITÓRIA ESCOLHEU ÓRION.

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