
Tais e Sabine
Para quem nunca esteve em uma pensão de estudantes, imagine um local cheio de cômodos e que em cada um deles há sempre espaço para mais um. Na pensão para meninas da rua Itaboraí, em Chapecó, é exatamente assim.E foi lá, que em uma quinta-feira resolvi aparecer e conhecer um pouco do que acontecia naquele lugar.
Com tons de marrom e branco, a casa me chamou atenção naquela tarde não só pela suas janelas de madeira antiga, mas também pelas inúmeras roupas penduradas no varal. Uma dança de cores que se balançavam com o tocar do vento. Quando cheguei em frente à pensão, bati palmas e aguardei. Apoiada em uma das barras de ferro do portão de tinta descascada, olhei para cima e me certifiquei de que estava no lugar certo. Sob minha cabeça, uma placa com escritas em letras grossas e rosadas “Pensão para estudantes. Somente meninas”.
Assim que a frase confirmou minha localização, um barulho de passos na grama me fez retornar o olhar para dentro do pátio, grande e todo coberto de verde. Na garagem lateral, um carro estacionado. Do outro lado, próximo a uma grande porta de madeira e vidro, uma moto. Por todo o gramado, varais de roupas. Ao centro da minha visão, Tais, uma garota de cabelos compridos, recém lavados, onde os pentes acabaram por passar. No primeiro instante, o que mais chamou atenção foram os grandes olhos da jovem, escuros e redondos como jabuticabas. Com um vestido jeans, a garota parecia refrescada, por mais que o dia estivesse quente demais.
A temperatura naquela quinta foi algo surpreendente. Pela manhã fazia tanto frio que me vesti com uma blusa de tricô e um casaco de lã batida. A tarde, a roupa deixou de combinar com o clima. Olhando para o jardim da pensão coberto de sombra, senti-me aliviada por entrar no terreno e escapar do sol que incomodava quem estivesse do lado de fora.

Durante o trajeto do portão até o corredor que levava à porta principal, tive a chance de conhecer a segunda mãe de Tais.
– Essa é a Dona Salete, ela é dona aqui da pensão.
Enquanto nos apresentávamos, Salete, mulher alta, de cabelos escuros e aparência de uns cinquenta anos, se preparava para estender o restante das roupas que acabara de pegar na área de serviço. Roupas que nem eram delas, mas que fazia questão de pendurar com todo o cuidado. De dentro de uma bacia, ela começou a tirar peça por peça e prendê-las com grampos de madeira.
Enquanto olhava a cena, rapidamente Tais desfez minha distração e me fez reparar no caminho, todo feito de pedras brancas e marrons, que formava um tipo de quadriculado no piso. Deixando o estreito corredor repleto de vasos de flores, entramos pela porta principal. Já na primeira olhada dentro da casa, dei de cara com um pequeno quarto onde uma das outras meninas que mora ali estudava naquele momento. Sem ter a chance de dar um oi, sigo Tais até a cozinha, passando por alguns calçados próximos a entrada. O chão de madeira não impede que os passo soem como alerta de que alguém está chegando.
Ao entrar no cômodo, duas grandes mesas localizadas quase no centro do espaço. De um dos lados, um grande sofá e uma televisão. Do outro, geladeiras, freezer, forno elétrico e microondas. Na outra parede, uma porta que leva para a pia e o fogão, grandes o suficiente para o dia a dia de uma cozinha que está sempre ocupada. Grudado na geladeira um cronograma com atividades diárias. Segunda-feira, por exemplo, é Tais quem faz o almoço.
– Senta! Fique a vontade!
Naquele instante me senti obrigada a tirar o casaco, que já me fazia suar. E como se aquela não fosse minha primeira vez ali, realmente me senti à vontade. Escorei meus braços sobre a mesa e indaguei Tais sobre sua vida.

– Eu moro aqui há pouco mais de um ano.
Tudo começou quando Tais decidiu seguir os passo da irmã mais velha e fazer um curso superior. Diferente de Cintia, formada em Administração, Tais optou pela Psicologia. Com a ajuda dos pais, encontrou a pensão que hoje chama de segundo lar. E assim, mudou seu endereço, de Caibi para Chapecó. Por mais grande que sua nova cidade pudesse parecer, com o tempo Tais descobriu que ela mesma é muito maior. E hoje tem a certeza que Chapecó é pouco para ela.
Para seus pais agricultores, não há orgulho maior do que ter as duas meninas com o futuro encaminhado. “Eles passaram por dificuldades durante a vida. Então ter duas filhas com ensino superior é uma grande conquista para eles”.
Com 19 anos, a garota aparenta muito mais. Não apenas pelos seus traços maduros, mas também pela segurança na voz ao formular cada nova frase e pelo jeito calmo de pronunciar cada palavra. Sentada com a postura ereta, as respostas saem da boca de Tais como se tivessem sido ensaiadas mesmo antes de saber o que seria perguntado. Enquanto conversávamos não evitei de associar seu jeito com sua futura profissão. Um estereótipo, sem dúvidas. Mas que no caso de Tais faz todo o sentido.
– Como é morar aqui?
Antes de me responder, Tais sempre pensa um pouco.
– É bom. A gente não se sente sozinha. Inclusive a mudança e o início da adaptação tornam-se mais fáceis, pois uma ajuda a outra.
Ao todo, 20 mulheres moram ali. Tais, Dona Salete e outras 17 garotas de 18 a 21 anos. Todas elas, exceto Dona Salete, saíram de suas cidades – na maioria dos casos, cidades pequenas – e desembarcaram em Chapecó para estudar. E mesmo longe da família, dos amigos de longa data e da comida da mãe, cada uma delas consegue encontrar seu espaço. Seja dividindo o mesmo quarto com duas ou três garotas, seja almoçando na mesma mesa, com todas elas. É como diz Dona Salete, em um momento que entra na cozinha e nos vê conversando, “aqui sempre tem espaço para mais um”. Nesse caso, mais uma.
Mas claro que mesmo já adaptada ao conforto da pensão, Tais não esquece e nem esconde o amor pelo lar de seus pais. Aquele que ela visita ao menos uma vez por mês. Com facilidade ela lembra de como sua casa é, e sem delongas descreve para mim como um local humilde, com um grande gramado, onde a família se reúne para tomar chimarrão e conversar. Além disso, é uma casa regada de carinho. Cada ida de Tais para lá só comprova a união que existe. “É sempre bom ir para casa. Matamos as saudades e queremos ficar o tempo todo juntos”.

Tais me apresenta a casa. Saindo da cozinha, seguimos para um dos corredores que tornam-se estreitos pela quantidade de móveis encostados às paredes. Mas ao mesmo tempo, dá para perceber que todos eles são utilizados. Armários com roupas de cama. Mesas para estudar. Calçados e livros colocados em pontos específicos. Em contrapartida, é impossível não notar que por mais vida que exista ali, os corredores dão a sensação de solidão. Não fossem as flores artificiais, os guardanapos sobre os móveis e os quadros pendurados pelas paredes, os corredores seriam totalmente apagados. Com as flores de plástico, a falta de iluminação deixa de ser um problema, e também, facilita a vida de um lar que está sempre correndo e não tem tempo para regar as folhagens.
Em um dos quartos, a janela aberta ilumina as duas camas que ocupam o cômodo. Um grande armário encostado na parede é o suficiente para o conforto das garotas que dormem ali. Mas alguns passos, no quarto de Tais, uma cortina cor de rosa esconde o sol que insiste em entrar. As roupas jogadas pelo colchão e os objetos fora do lugar, tornam o espaço ainda mais pequeno. Sobre as camas, duas estantes. Uma de cada lado. Sua colega de quarto, Kimberly, não está, mas as fotos penduradas ao lado da cama da garota dão a ideia de quem ela é.
– Por que você não tem fotos penduradas também?
– Eu não comprei um cordão. Só tenho aquelas duas lá em cima, com minha irmã e meus pais.
Deixando de lado as fotos do quarto das duas meninas, seguimos para o cômodo ao lado. Lá, outras quatro garotas dividem o mesmo espaço. Quatro camas de solteiro. Dois guarda-roupas. Um espelho. No fundo do quarto, uma das camas é acompanhada por uma mesa de estudos, uma cadeira e um grande urso de pelúcia. É ali que conheço Sabine, outra das garotas que aceita conversar comigo. Logo de cara já posso dizer que o quarto dela é o mais bonito da casa. Com uma janela exclusiva só para iluminá-lo.
– O que estão fazendo?
– Estou dando uma entrevista. Quer participar também?
– É sobre o quê?
– Quer explicar para ela, Ana?
– É sobre vocês. Quero conhecer um pouquinho do que se passa aqui na pensão. Se quiser participar, adoraria ouvir sua história.
– Pode ser!
– Quando você veio morar aqui?
– Faz menos de um ano.
– E porque veio?
– Para estudar na federal.
Sabine tem 18 anos e estuda Enfermagem. É um tanto mais alta que Tais. Com bochechas grandes e rosadas, a pele da garota fica ainda mais branca por conta dos cabelos escuros. Coincidentemente, assim como quando Tais me recebeu no portão de casa, Sabine também estava com os cabelos molhados, recém penteados, como quem acabara de sair do banho.
Reunidas na cozinha novamente, dessa vez em três, a jovem me conta que mesmo com pouca idade tomou a coragem de sair de Rondinha, sua cidade natal, com pouco mais de cinco mil habitantes, e desembarcar em Chapecó com um população 30 vezes maior. Isso, para realizar seu sonho de fazer uma graduação.
– Você lembra como foi seu primeiro dia aqui na pensão?
Um pouco mais tímida que Tais, Sabine responde a tudo com frases curtas e rápidas. Às vezes, de uma palavra só.
– Sim!
O primeiro dia de cada uma ali segue um ritual. Todas se reúnem na cozinha para compartilhar um pouco sobre si mesmas e assim conhecer e se apresentar para quem está chegando. Desse jeito, o nervosismo, medo ou ansiedade começam a dar lugar ao conforto e união de todas elas. É uma forma de unir laços e acalmar os ânimos das novatas.
Sabine lembra de como estava nervosa em seu primeiro dia. Mas logo em seguida, recorda como as colegas de pensão facilitaram sua chegada e tornaram sua estadia cada vez mais fácil. Hoje, tem um carinho por todas, sem exceção, inclusive por Tais. “Ela é tipo uma irmã mais velha que todo mundo gosta”.
Ao falar em família, Sabine não esconde o amor pelos avós, aqueles pelos quais sente mais saudade. Por maior que fosse a distância, quando decidiu estudar fora, a garota teve todo o apoio que precisou. Sua família deu total suporte para que ela pudesse seguir seu objetivo.

Mas claro que assim como todo lugar onde tem família grande, é preciso seguir regras para facilitar a convivência. Ali não é diferente. Por exemplo, uma das normas é relacionada a presença de homens. Ou seja, Sabine, assim como as outras meninas que têm namorado, sabe que o melhor é se despedir no portão. “Somos em muitas meninas, é preciso conservar a privacidade de cada uma”. Essa compreensão de Sabine é partilhada pelo seu namorado Luan, que sempre a deixa na porta de casa, sem esperar pelo convite de entrar.
Além disso, a geladeira, os afazeres domésticos, as contas da casa e as responsabilidades diárias são divididas igualmente. Hoje, cada garota paga para Dona Salete, 370 reais por mês, que além de hospedagem, refere-se à água, luz, internet e a carne das refeições. Muitas das garotas contam com o auxílio financeiro dos pais. Por Tais possuir bolsa de estudo e Sabine estudar em universidade federal, as coisas tornam-se mais fáceis, mas mesmo assim, é difícil se manter sem ajuda financeira.
Atualmente, as duas estão focadas apenas nos estudos. Tais se envolve também com projetos dentro de sua universidade e sonha em futuramente trabalhar como psicóloga no programa Médico Sem Fronteiras. “Quero ajudar aqueles que precisam, mas não possuem renda para pagar um profissional”. Já Sabine, sonha em ser uma enfermeira residente “tipo Grey’s Anatomy”, ela ri enquanto imagina seu futuro distante da ficção.
E é ali na pensão para meninas da rua Itaboraí, que Tais, Sabine e outras 18 mulheres constroem seus futuros. Por isso, ao perguntá-las o que de mais lindo elas veem da janela da casa, a resposta, com certeza, refere-se aos inúmeros sonhos que a vida é capaz de construir.

Ao me despedir de ambas e de Dona Salete, ouço uma frase que me deixa ainda mais aliviada por ter passado por ali.
– Quando precisar, só aparecer!
É como se eu me sentisse em casa, mesmo sendo de fora.
