Alucinação: sobre as coisas que deveríamos ter aprendido nos discos
Alucinação: sobre as coisas que deveríamos ter aprendido nos discos

Alucinação: sobre as coisas que deveríamos ter aprendido nos discos

Por Renan Bernardi

Enquanto Belchior não quis falar sobre as coisas que aprendeu nos discos, nos vemos hoje na missão de falar o que aprendemos neles. Em especial, em seu próprio registro: Alucinação, de 1976.

Menos experimental que o seu primeiro, Mote e Glosa (1974), Alucinação é, ao menos em questão de letras, o álbum mais conciso da música brasileira.

Faixa a faixa, como num roteiro de filme, Belchior demonstra suas ideias e pensamentos recolhidos em muitos anos. Anos esses, que se pensar de forma tão avançada já poderia ser considerado um crime. As palavras de Belchior conflitavam com os tempos sombrios do Brasil dos anos 70. Tempos que hoje infelizmente tememos se repetir.

Mas se o poeta não quis falar sobre o que aprendeu nos discos, é porque falou sobre o que viveu, e esse é o tema do roteiro de Alucinação: as percepções de um rapaz latino americano, sem dinheiro no banco, mas com muito Fernando Pessoa na cabeça e voz ativa para falar.

Nessa mesma canção que abre o trabalho, a frase “sem parentes importantes” foi uma adaptação a frase original: “sem parentes militares”. Essa adaptação se deve, logicamente, ao medo que existia em um período de ditadura militar. E é por tratar esse medo de forma tão sublime, é que Alucinação talvez seja o registro mais importante da resistência de uma juventude em um período tão assombroso. Belchior era extremamente humano, político e visionário.

As duas canções que seguem a primeira, “Velha Roupa Colorida” e “Como Nossos Pais”, já tinham sido entoadas e aclamadas na belíssima voz de Elis Regina antes mesmo do registro do álbum de Belchior, mas é na voz do compositor que se vê a maior honestidade de suas palavras. As canções se assemelham em mensagem, é como se uma fosse a continuidade da outra, mostrando mais assiduamente as ideias que o disco leva: O passado está presente, e precisamos de uma juventude ativa para podê-lo deixar em seu devido lugar – para trás.

A mais humana das canções do álbum, “Sujeito de Sorte” mostra um Belchior esperançoso em meio a toda cólera. “Ano passado em morri / Mas esse ano eu não morro!” mostra ao mesmo tempo, toda a dor e toda resistência de uma juventude absolutamente abalada e conflitante com a repressão.

“Como O Diabo Gosta” não poderia ser mais explícita (e infelizmente, nem menos atual). A revolta declarada e o impactante verso “E a única forma que pode ser norma / É nenhuma regra ter” demonstra um posicionamento inteiramente contrário ao daqueles que ditavam as regras naquele momento.

A faixa-título do álbum é uma obra de arte por si só. Ela coloca em xeque todos os comodismos da sociedade. Mostra como coisas aterrorizantes podem se tornar banais em nosso cotidiano e, acima de tudo, o quanto Belchior estava disposto e interessado em mudar isso através do amor.

Na sequência, “Não Leve Flores” é a canção que se ouve tremendo ao perceber a sua relevância hoje, quando se vê um fascista assumir o poder depois de tantos anos em que esse Brasil se livrou de uma ditadura militar. Uma letra de 1976 que poderia ter sido escrita em 28 de outubro de 2018.

Em “A Palo Seco” a gente vê toda essa conversa sobre a política, o medo e a posição da juventude levada à uma conversa entre amigos. Belchior é mais uma vez extremamente pessoal, ao mesmo tempo que consegue aplanar toda a resistência do Brasil de 76. Falando dos pesadelos de 73 e de um certo orgulho em se ver como um cidadão latino americano, ridicularizando a insistência que a classe média alta brasileira tem em se espelhar nos Estados Unidos.

Chegando aos fins desse maravilhoso registro, “Fotografia 3×4” é uma das canções mais antigas e mais belas de Belchior. Nela ele conta da dureza da migração nordestina para o sudeste, os preconceitos e a repressão policial. Belchior não se continha em criticar quem lhe parecesse justo, e apontava o dedo na cara até mesmo de seu ídolo Caetano Veloso e de todos os remanescentes da tropicália, que naqueles anos já não estavam mais ativos na resistência como tiveram outrora.

“Antes do fim” é uma rápida mensagem do poeta e um lembrete de tudo que cantou durante o álbum:

“Quero desejar, antes do fim,

pra mim e os meus amigos,

muito amor e tudo mais;

que fiquem sempre jovens

e tenham as mãos limpas

e aprendam o delírio com coisas reais.”

É assustadoramente triste vermos tantas semelhanças na poesia de Belchior em pleno 2018. É assustador também vermos o quanto deixamos de ouvi-lo nesses últimos anos. É triste ver como a vivência e resistência dele e de tantos outros e outras ainda não foi o suficiente para barrarmos as mensagens conservadoras que tomaram conta do nosso povo e sugaram a humanidade que se é devida para viver em uma democracia.

Mas ainda tendo o poeta como referência, é importante lembrar que além de todos os seus avisos e as pesadas mensagens sobre a realidade, Belchior era esperançoso e incentivava a cada momento que seguíssemos em frente e lutando.

“A voz resiste. A fala insiste. Quem viver verá!”

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