
Fotografias: Rodrigo Menezes
Quem vai ao teatro ver Arame Farpado volta para casa em êxtase. Uma mistura de representatividade e vergonha surgem ao entender o conteúdo da peça. Para alguns, representa o que se passa no dia a dia, para outros o que passa despercebido e pouco se é feito para mudar. O espetáculo é como um alicate que corta os arames que machucaram e machucam diariamente várias pessoas negras e periféricas.
A peça foi criada a partir do Trabalho de Conclusão de Curso “Periférico, Pedagógico e Universitário – Um diálogo do aluno favelado com a universidade”, escrito pelo diretor e dramaturgo, Phellipe Azevedo. Phellipe é favelado, cria da favela do Caju, Rio de Janeiro. Ao entrar na faculdade, depois de quatro tentativas, se deparou com um espaço onde os diálogos pautados eram voltados unicamente para o mercado teatral do Centro e da Zona Sul e onde as referências eram majoritariamente europeias, o que despertou um sentimento de perda da sua identidade cultural.
Ao longo da sua graduação, manifestações da favela dentro daquele espaço foram pontuais, tais como no dia em que sua turma foi assistir ao espetáculo “Qual é a nossa cara?”, da Cia Marginal (Companhia teatral surgida no complexo da Maré), com o intuito de dialogar com a aula de expressão corporal.
“Historicamente, o espaço acadêmico é um lugar que por muito tempo foi negado ao pobre. A presença do favelado e periférico dentro desse espaço ainda é uma resistência. Não é orgânica a sua presença na universidade. Como estar num lugar que não te acolhe e não te quer lá? Como podemos existir nesse lugar? Como as histórias dos meus pares não desaparecerão?”, afirma o diretor. Arame Farpado é então uma forma de garantir que essas histórias se farão presentes naquele espaço, que novas narrativas serão pautadas.
A peça foi desenvolvida a partir das memórias e anseios dos quatro atores. “Durante o processo de ensaios, nós tínhamos encontros regulares semanais, fazíamos jogos e improvisações que duravam entre 40 e 45 minutos em média. Essas improvisações eram preenchidas por dispositivos/ações dadas previamente pelo diretor que nos auxiliavam a manter o jogo acontecendo. Também contamos com o auxílio do livro “Por que uns e não outros” de Jailson de Souza Silva. Tudo o que era criado era guardado para ser utilizado em algum momento”, lembram.
Em entrevista, o grupo fala um pouco mais sobre como é fazer parte deste projeto e deste espaço demarcado por arames farpados:
1) Qual a importância de levar para fora da universidade, trabalhos e ideias que geralmente ficam somente no meio acadêmico?
É importante mostrar que existe uma produção preta e favelada ativa e de qualidade se estruturando no cenário teatral dentro das universidades. É importante mostrar que existe esse movimento de resistência que busca falar de temas que nos representam e que não são devidamente discutidos. Precisamos denunciar o que está acontecendo ali dentro, como, por exemplo, as pichações “Pretos fedem” e “KKK” (Klu Klux Klan), que surgiram em 2017 nas paredes do prédio de teatro. Os autores ainda não foram identificados, mas para além disso, que ações estão sendo tomadas para que mais pichações como essa não voltem a aparecer? Para além de entrar na universidade pela política de cotas, são necessárias uma série de políticas de permanência que são negligenciadas pelo Estado, como a criação de moradias e creches universitárias e a abordagem de autoras, autores e questões negras e indígenas ali – algo que já é pautado pela lei 11.645. É extremamente importante sair da universidade levantando essas questões, colocando esse sentimento de “não-pertencimento” como algo não natural.
2) O conteúdo da peça é capaz de fazer o espectador receber vários “tapas” na cara durante a apresentação. Como está sendo a recepção e o retorno?
A recepção tem sido maravilhosa. É incrível ver a quantidade de pessoas que se sentem representadas pelo espetáculo mesmo sendo de lugares completamente diferentes. No Rio, há pessoas que já assistiram mais de 5 vezes ao espetáculo. A gente se surpreendeu com a quantidade de camadas que o espetáculo alcança as pessoas. Há aquelas que estudam teatro na UNIRIO e por isso conhecem as referências de textos e aulas que colocamos e há pessoas que vêm falar com a gente emocionadas e que nunca estiveram em uma universidade. Lógico que também tivemos pessoas que se sentiram agredidas pelo conteúdo do espetáculo, mas é algo que já esperávamos que fosse acontecer, exatamente por se tratar de uma tensão de poderes que era constantemente silenciada e “deixada para depois”.
3) No espetáculo, é pichado a frase “Não devemos falar da Unirio”. É uma contradição e ironia com o conteúdo da peça. Houve algum tipo de censura por parte da universidade ou manifestações exacerbadas após a estreia da peça?
Teve recriminações mais da parte de professores, porém bem poucos. Houve professores em sala de aula dizendo que a encenação era brega e que a dramaturgia da peça criava uma certa dicotomia que colocava os professores como vilões da história. Surgiu ainda um grupo de professoras que se reuniram para pensar uma cena “em resposta ao Arame Farpado”, abordando as dificuldades dos professores dentro da academia ao lidar com os alunos e com a estrutura acadêmica, mas, como já dissemos, nós esperávamos esse tipo de reação e acreditamos que o debate é sempre válido quando ele é exposto e discutido honestamente visando algo melhor. Que bom que finalmente estamos falando da UNIRIO.
4) Como vocês veem o atual cenário cultural brasileiro?
Depende do que estamos chamando de “cenário cultural brasileiro”. Ele é bem diverso. Há no Brasil manifestações culturais das mais variadas e surgem novas a cada dia, principalmente nas periferias. O problema é o olhar do Estado para essas manifestações. “O cenário cultural comercial brasileiro” é como os grandes latifúndios que são controlados há séculos pelas mesmas pessoas, com os mesmos sobrenomes. Nesse nicho eles conseguem verba para produzirem arte voltada para as mesmas pessoas da mesma classe, falando sobre suas próprias questões que não abarcam a diversidade de culturas e questões contidas no que chamamos de Brasil. Isso não quer dizer de jeito nenhum que não há resistência. No Rio de Janeiro, por exemplo, uma forte corrente de arte preta está se firmando no mercado, sendo uma grande parte de forma independente, financiadas geralmente através de financiamentos coletivos exatamente por pessoas pretas que anseiam por representatividade. Estamos mais do que nunca percebendo a necessidade de manter nosso dinheiro circulando entre a gente.
5) Para vocês, qual é a maior dificuldade em se fazer teatro?
Partindo do lugar de um grupo com favelados, periféricos e majoritariamente formado por negros, as dificuldades já estão expostas para nós pela própria estrutura social da qual fazemos parte. Teatro é algo que exige presença, porém, como se fazer cem por cento presente passando seis horas por dia no transporte público, ou não conseguindo sair de casa devido a uma operação policial e ainda ter que dar conta das leituras acadêmicas? Antes de lidar com a escassez dos investimentos em arte, nós crescemos lidando com o abandono do Estado em serviços básicos. Para além do absurdo que isso é, isso também nos deu potência e fez com que criássemos uma rede de apoio enquanto classe. Uma rede de amigos e colaboradores que nos ajudou no período de ensaios e na construção de cenas, como membros da Cia. Marginal e do Coletivo Paralelas e o Centro de Artes da Maré que por diversas vezes foi o nosso local de ensaio. Essa rede também nos acompanha nas apresentações do espetáculo. O Arame Farpado é fruto de um movimento que vem se estruturando há décadas. Enquanto alguns reclamam da ausência de público nos teatros, nós – não só o Arame Farpado, mas, também outras produções de teatro negras – estamos lotando os teatros com os nossos na plateia.
6) De que forma vocês enxergam a importância de leis de incentivo à cultura?
Elas são extremamente importantes. São essas leis que estão sustentando as produções culturais no Brasil, atualmente, mesmo que em pouca escala. O grande problema, pelo menos no Rio de Janeiro, é que o dinheiro do financiamento não parte do governo. A lei apenas chancela a possibilidade de determinado projeto receber a verba e é dever da produção correr atrás de empresas que irão financiar efetivamente o produto. Isso afeta, entre outras coisas, a liberdade de expressão dos produtores já que o projeto passa pela análise da empresa que pode recusar sem nenhuma justificativa, simplesmente por não querer a sua marca vinculada a determinado conteúdo.
Programação:
SETEMBRO
29/09 – 1° Fórum de Teatro – SESC Campos, Campos dos Goytacazes, RJ
30/09 – Mostra Comunidades, Arte e Criação – Teatro do Centro de Artes da UFF – Niterói, RJ
OUTUBRO
04 a 07/10 – Curta temporada no Sesc Ginástico, Rio de Janeiro, RJ
18/10 – Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)
NOVEMBRO
17/11 – SESC São Gonçalo, RJ